Tudo que é muito novo parece estranho. Do contrário não era novo. Quanto mais novo, mais estranho, e se algo novo é facilmente compreendido, é fácil de deixar de ser estranho, quer dizer que não era tão novo assim. Isso tem a ver com teoria da informação.
Por outro lado, conforme as coisas vão ficando velhas elas também vão ficando estranhas. Vá lá, algumas coisas são antigas, mas permanecem "atuais". Outras ficam démodé, se tornam ultrapassadas, são paulatinamente esquecidas pra valer... Às vezes até numa velocidade espantosa, especialmente quando substituídas por alternativas.
Assim, tudo o que familiar é velho o suficiente pra ter sido "assimilado", mas novo o bastante para permancer atual. Nossa cultura geral é basicamente constituída por essas coisas nem tão velhas e nem tão novas. E cada coisa descoberta segue esse ciclo de vida... (Às vezes podendo ser redescobertas, às vezes inclusive com nomes diferentes.) Mas tanto coisas muito novas quanto muito velhas são estranhas.
Isso explica, por exemplo, meu gosto por estudar história. O que eu curto não são simplesmente novas tecnologias, ou como dizia no meu inesquecível guia de inscrição no vestibular da UFMG: "A arte de lidar com a tecnologia de ponta". Eu gosto é de estudar coisas que me parecem estranhas, até elas deixarem de sê-lo, sejam novas ou velhas. (Claro que às vezes é mais fácil estudar a velhas, porque sempre sobra uma certa influência.) Na verdade eu gosto de estudar qualquer coisa, mas as menos estranhas são inerentemente mais fáceis e menos interessantes, requerendo menos tempo e trabalho, e recompensando menos.
Tava pensando nisso por causa desse livro do 2600 que mencionei antes. No livro existem diversos artigos escritos quando as tecnologias ali estavam chegando. Eram portanto coisas estranhas, sendo estudadas pelos hackers buscando desvendá-las. Hoje, não muito mais de 20 anos depois, muitas destas tecnologias novas, que eram estranhas na época, são hoje estranhas porque se tornaram obsoletas. O sentimento de um hacker jovem que ler o livro vai ser sem dúvida diferente do velho, que desbravou a tal tecnologia, mas existe algo em comum, existe um sentimento de "descoberta", seja como engenharia, ou seja como arqueologia.
O mais engraçado é o curto espaço de tempo: em 20 anos essas certas tecnologias logo passaram de novas para velhas. Só não foram estranhas por um período muito curto da vida delas, e mesmo assim para muito poucas pessoas. Tem coisas ali que foram e sempre serão consideradas estranhas para a grande maioria das pessoas, em qualquer época, porque nunca foram devidamente assimiladas antes de se tornarem obsoletas.
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Outro dia tava assistindo NatGeo, e passou um programa de dois caras que saem viajando pelo mundo aprontando altas prezepadas, fazendo projetos para demonstrar a viabilidade de fontes ditas “alternativas” de energia. Aliás, nos Estazunidos tem acontecido muito isso ultimamente, a produção de programas de TV buscando fixar bem na mente das pessoas que qualquer coisa diferente de petróleo e carvão são fontes alternativas de energia, e não fontes de energia iguais a quaisquer outras.
Pois bem, umas das coisas que os caras fizeram foi ir lá na Espanha (um dos países que mais investe em energia eólica hoje, e a terra do Dom Quixote que lutava contra moínhos-de-vento), e ensinar prum fazendeiro lá como fazer um cata-vento pra puxar água de um fosso pra dar de beber às suas rezes. Os caras montaram um, estilo estadunidense (daqueles redondinhos) todo de metal (!), fizeram o processo todo parecer muito difícil e desafiador, e ainda falaram uma porção de conceitos errados (em especial falaram que a bomba precisa fazer uma pressão pra baixo pra fechar a válvula, enquanto que a válvula fecha-se naturalmente pela pressão do desnível entre a água sendo puxada e a fonte.)
Mas no final, conseguiram fazer a bomba movida pelo vento.. Demonstraram o uso dessa tecnologia mais velha do que a Sé de Braga, e mais confiável. Os caras ficaram absolutamente surpresos, estupefatos, exclamando “uau! Olha só conseguimos reoslver o problema sem utilizar nem combustíve nem energia elétrica!!”
Quer dizer, é nesse mundo que estamos hoje. Qualquer equipamento que não funcione movido por combustível (especialmente no Estazunidos que não tem o potencial hidro nosso, e nem depende muito de nuclear) e ainda que não utiliza energia elétrica, é visto como estranho. Porque na cabeça deles isso “ficou pra trás”.
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Tem gente que vejo na escola de engenharia que chega a encarar com certa suspeita sistemas de controle que não são baseados em microcontroladores, com programinhas que tratam apenas de digitalizações de sinais. Coisas analógicas já são lá vistas por algum com desconfiança e estranheza, ainda mais se não forem baseados em amp-ops, mas sim transistores antigões, BJTs. Válvula então nem pensar. É certo que elas possuem desvantagens terríveis, mas nunca podemos nos esquecer de que elas funcionam, pôxa vida!...
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Por uma caso esse assunto todo tem a ver com esse texto muito engraçado que Lia recomendou agora a pouco no Twitter!... :) (e um outro post relevante da mesma.)
2008/06/02
A insustentável familiaridade das coisas, e a eterna estranheza dos seres
2008/05/28
O mais terrível e sutil dos pecados
O mais terrível e sutil dos pecados é a híbris. Sutil porque tem que ser velho pra sentir bem sua pecadice. Tem que ser um professor de melancolia. Terrível, porque... bem, quando você entender você vai saber.
Híbris é uma certa desmesura, descortesia, destempero, indelicadeza, mas cometida numa hora catalítica, que torna esta indelicadeza especialmente inadequada. Eu entendo como algo que por muitos anos vinha já investigando, e agora identifiquei como sendo este antigo e importantíssimo conceito grego clássico. Trata-se do que (usualmente) entendemos por "tirar onda"!... É aquela coisa que te deixa assim: "Pô, aí, sacanagem!..."
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Muitas coisas que se falam ser híbris, não são. Em especial várias listadas ali na Wikipédia:
1_ O John Nash desconsolado por achar que não podia perder. Ora, não existe algo como "a híbris do perdedor", porque a híbris é um crime que só pode ser cometido pelo ganhador. O sujeito que ganhou, ao zoar da cara do Nash, pode até quem sabe ter cometido ele mesmo um ato de híbris.
2_ Xerxes, ao enviar seus melhores soldados para tentar matar os 300 de Esparta nas Termópilas, não cometeu híbris. E muito menos "caiu numa armadilha". Ele fez uma manobra militar compreensível. Híbris foi depois, quando ele mandou decapitar e crucificar o corpo do rei Leônidas. Aliás, vilipêndio a cadáver é a epítome da híbris. [Essa deve ser a frase mais linda que eu já escrevi na vida...] Híbris no sentido mais amplo teria sido por exemplo não apenas dar uma grana para Efialtes, mas ainda dar algum bom cargo administrativo para ele nas terras conquistadas, ou outro disparate do tipo.
3_ O Doutor destino não cobre seu rosto devido a híbris... Ele é é vaidoso e arrogante. Mas desconheço que jamais tenha tratado nenhum dos quatro fantásticos ou nenhum arauto de Galactus da mesma forma como Odisseu tratou o cíclope.
Resumindo, lá nos Estados Unidos eles tentam enxergar isso como um tipo de mau perdedor, que não aceita seu lugar, mas é o contrário: é um mau ganhador, que se coloca num lugar alto demais, de onde pode sofrer uma queda ainda pior. Como "winners" natos, tentam redefinir o significado da híbris para fingir que não há forma de cometer este pecado, que eles estimam tanto. São o "number one" em sua prática.
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Quando cheguei aqui em São Paulo, ouvia muito falar que corintiano é chato. Não sei se cheguei em mau momento, mas não tenho achado não. Tenho achando os corintianos muito simpáticos, torcedores "do coração". O torcedor usual torce para seu time, e este em troca lhe "recompensa" com vitórias e títulos. No caso do Corinthians (e outros poucos), o torcedor torce e tem esse amor correspondido, como se o Corinthians torcesse pro corintianos em retorno.
Vi no dia do último jogo que o Timão jogou com alguma esperança de não ser rebaixado um ônibus cheio de torcedores, e foi uma das raríssimas vezes na vida que senti vontade de estar ali torcendo junto daquele pessoal.
Mas aí eles perderam. No dia seguinte uma horda de torcedores do Palmeiras (que não tinha jogado, mas tava em boa posição na vida) invadiu as ruas, gritando, xingando, buzinando. Passou por mim um carro Uno com palmeirenses da classe média, pararam no ponto de ônibus, e ficaram gritando, falando alto mesmo, enumerando as glórias palmerenses e os vexames do Curingão. Não senti vontade nenhuma de estar ali junto desse pessoal. No banco do carona, uma menina jovem, branquinha, bonita, de cabelo comprido castanho, com o inegável uniforme verdinho olhou pra mim e pessoas do meu lado com olhos arregalados, falando alto uma série de impropriedades. É "cachorra na balada"?... Não sei, mas uma coisa eu digo: é híbris!...
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Híbris é o cara que canta pneu depois da barbeiragem, cospe no chão depois de te derrubar, te dá aquela olhada com as sombrancelhas arqueadas usando óculos "matrix".
[Essa agora é viagem total] Frases comuns à prática da híbris são: "Mas também..." e "você sabe o que que eu tou falando". (Comuns mas nem necessárias ou muito menos suficientes.)
2008/05/09
Dedetizado pelo sistema
Outro dia aprendi duas coisas, e vi uma similaridade, talvez devido apenas à simultaneidade.
Lendo sobre o julgamento de Sócrates, aprendi sobre seu papel de espora/mutuca da sociedade. Parece que a palavra grega tinha ambos sentidos... Mutuca é certamente mais engraçado, e interessante por permitir uma alegoria zoológica: Sócrates é o insetinho inconveniente, pinicando o cavalo ou boi da sociedade. O texto abaixo, da Apologia de Platão (seção 30e?) é que traz esta imagem, e explica a função, senão missão que Sócrates clamava ter.
Pois se vocês me matarem, você não vão facilmente encontrar outro cidadão como eu, ligado a esta cidade -- a comparação pode parecer ridícula -- como a um cavalo poderoso e gentil, um pouco desajeitado devido a seu próprio tamanho, e precisando ser incitado pelo ferrão de uma mutuca; assim me parece ter a divindade me unido, sendo eu assim como sou, a esta cidade, para que eu possa instigar vocês, e persuadir e reprovar cada um de vocês, sem lhes dar sossego em momento ou lugar algum.
(tradução colada de pedaços de outras línguas)
Ao mesmo tempo, ando ouvindo com certa freqüência a Nirvana, principalmente o primeiro disco, Bleach. Pra quem não conhece (botei até link pra wikipédia, este é um post dedicado às novas gerações!), o Kurt Cobain fazia umas letras muito malucas. Na música Negative Creep, ele diz:
This is out of our range (x3)
and grown
This is getting to be (x3)
drone!
I'm a negative creep (x3)
and I'm stoned!
I'm a negative creep (x3)
and Iiiaaaarrrgh! (2x)
Não sei se jamais vou descobrir o que podem significar cada palavra e verso das músicas do Kurt, muito menos se ele queria dizer algo específico nelas. Mas uma coisa podemos saber com certeza: a palavra drone significa, entre outras coisas, um "zangão"!...
O zangão, todos devem saber, é o macho da abelha. Ele não tem ferrão, não faz mel, não constrói nada, não fabrica nada, só passa o dia comendo e dormindo, e eventualmente acasalando com a abelha-rainha.
Não consegui descobrir nenhum uso da palavra como alguma gíria bizarra, parece apenas que é frequentemente utilizado pra especificar um "parasita", uma pessoa numa sociedade que só fica rondando por ali, sem fazer nada de útil, sugando recursos, e eventualmente modificando irreversivelmente o status de meninice de outros indivíduos fêmeas.
Será que podemos atribuir ao Kurt esse papel? Talvez essa música fale sobre isso, ele está talvez falando sobre estar ligado à sua cidade desta forma atribuída por uma divindade.
Estas duas visões destes dois grandes heróis como insetos inconvenientes me lembrou imediatamente da idéia de autopoiese, de Maturana e Varela. É um assunto meio complicado, mas é basicamente um sistema que se encontra num estado tal que ele é capaz de replicar esta própria organização em que ele se encontra para tal.
O conceito começou pra ajudar a pensar sobre sistemas biológicos, mas foi facilmente reaproveitado em diversos outros contextos. Um dos livros que os dois escreveram sobre o assunto foi bem na época que tavam rolando uns movimentos socialistas no Chile (época do Allende), teve uma tal invasão numa universidade lá, em que mudaram altas estruturas de poder. Nesse livro o Maturana escreve umas considerações que ele não pôde ser furtar de fazer, sobre transformações sociais e autopoiese... uma coisa que ele escreve é sobre indivíduos que se desligam da sociedade, no processo de causar uma revolução, e ele fala sobre como este indivíduo elimina suas dependências da sociedade, ea sociedade dele (desligam-se as tais autopoieses lá um do outro).
São insetos inconvenientes, saindo do enxame para espetar o mesmo, agora transformado em massa contínua e disforme do lado de fora.
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Consegui ainda ver o inseto contestador da sociedade agora numa música do CCR, a segunda do segundo disco: Bootleg, Bayou Country. Provavelmente a música mais nasty do mundo, porque faz uma análise fria da psique humana, insinuando haver algo de inerentemente prazeroso em se violar leis, e ainda que seguindo-as, às vezes até se perde a graça.
Chorus:
Bootleg, bootleg;
Bootleg, howl.
Bootleg, bootleg;
Bootleg, howl.
Take you a glass of water
Make it against the law.
See how good the water tastes
When you can’t have any at all.
Chorus
Findin’ a natural woman,
Like honey to a bee.
But you don’t buzz the flower.
When you know the honey’s free.
Chorus
Suzy maybe give you some cherry pie,
But lord, that ain’t no fun.
Better you grab it when she ain’t lookin’
’cause you know you’d rather have it on the run.
Chorus
Pegue um copo d'água
Torne-o contra a lei.
Veja como fica bom o gosto
quando você não pode ter nem uma gota.
A estrofe de interesse é obviamente apenas a segunda, cuja tradução já se torna impeditivamente ridícula. Mas tem tudo a ver com a geração web 2.0, pq fala em BUZZZZ!...