2008/03/21


Porque servem um copo de água junto com o café

Resposta rápida: a idéia é tomar a água antes do café. Mas que eu saiba não é nenhuma gafe terrível tomar em outra ordem, ou mesmo deixar de tomar. Então fique tranqüilo, e curta o seu cafezinho do jeito que melhor lhe convir...

Resposta lenta:

Não tem nada mais legal do que ver as consultas que levam as pessoas às suas páginas!

Alguém caiu no meu conto ali abaixo buscando no google por porque servem um copo de agua junto com o café. O famoso copinho de água mineral, freqüentemente com gás, que começaram a servir a uns poucos anos por aqui nas melhores cafeterias perto de sua casa. Como é um assunto que me fascina (tanto que escrevi um conto que fala sobre isso) lá vai. Tudo o que você queria saber sobre o copinho de água junto do café.

A dúvida maior que geralmente se tem é se é pra beber antes ou depois. Pois bem, a idéia é que se beba antes, pra você “limpar” sua boca e poder apreciar melhor o sabor da bebida. Isso é especialmente importante se você tiver acabado de comer algo, como geralmente é o caso quando se toma café.

Mas é claro que este é um país livre, e se você quiser deixar pra tomar depois, também pode. Eu mesmo deixo sempre um golinho pra depois. Aliás, outra coisa que eu faço é às vezes pedir um docinho junto do café, e ir intercalando da seguinte forma: água, café, doce, água, café, doce...

É, enfim, um “instrumento” para você utilizar em sua experiência degustativa da forma que quiser. Alguns podem até querer impor por aí que é “só” pra isso ou aquilo. São os hitlerzinhos do dia-a-dia. Mas eu vou longe disso, digo que se quiser, por exemplo, misturar um pouco na bebida negra, porque não? Afinal, tem gente que prefere o popular “chafé”, né?... Isso pode servir pra esfriar a bebida também, quando vem muito quente. Ou ainda, por exemplo, você pode ir bebendo a agüinha lentamente enquanto a xícara esfria, se for o caso.

Água é algo básico na vida e na culinária. Tem muitas coisas por aí que podem ser melhor apreciadas com uma boa agüinha. Mas só “colou” com o café, porque fica bonitinho aquele copinho de cachaça do lado da xícara.

É poisé, parece um copo de cachaça, né? Também já achei engraçado a primeira vez que reparei, mas isso “já é tããão semana-passada”!... (pra imitar o Anthony Bourdain) E eu nem sei o que haveria de tão engraçado em se tomar um copinho de cachaça. Tenho uma suspeita de que quem acha isso engraçado são pessoas que consideram cachaça uma bebida não-chique, enquanto café seria algo sofisticado, e do contraste decorreria o efeito humorístico. Tem gente ainda que considera o café uma bebida inofensiva, e o álcool um entorpecente mais sério, e daí surgiria outro contraste.

No dia que eu abrir meu café, vou colocar no cardápio: café com um copinho de cachaça, Cointreau ou Steinhager. Já ouvi falar até em café com vodka, mas estou ainda pra aceitar que tenha mesmo algum valor. Café com Cointreau é inigualável, adoro. E vai vir copinho de água também, dois copinhos, uma xícara, e um docinho. Pra quem quiser achar graça ao invés de beber, vá em frente, sorria. Quanto mais bom-humor melhor pro mundo.

2008/03/20


Encontro com Clarke

A algumas semanas atrás eu havia conseguido um endereço de e-mail pra Scholarpedia poder convidar o Arthur Clarke a escrever um artigo pra lá, sobre satélites geo-estacionários de comunicação. Ele declinou, mas ao menos respondeu o convite (muitos convidados nem dão bola).

Por causa disso eu estava com ele fresco na cabeça, sabia que ele tinha acabado de fazer 90 anos... E uma preocupação grande da Scholarpedia hoje é justamente tentar chegar aos potenciais autores mais velhos. É um alívio saber que pelo menos tentamos no caso dele... Mas é claro que não é um alívio que ultrapasse a tristeza da sua mudança irreversível de estado.

Fiquei sabendo da morte do Clarke de manhãzinha, meu cunhado me mandou um e-mail, e foi uma coisa rara eu ter lido tão cedo meus e-mails. Eu não esperava que fosse ficar tão triste no dia inevitável-mas-não-comentável, já que ele não era um dos autores no topo da minha lista de preferidos (apesar deu ter lido um só livro)... Mas foi só ontem que percebi que em primeiro lugar ele é pra mim mais do que um autor de livros... Ele representa muito mais do que isso, é um nome associado com "achar legal" ciência, tecnologia e a ficção-científica, e isso é que é o mais importante. Era um "bastião" de muitas coisas legais, antes mesmo de ser um autor.

Senti um frio na espinha porque percebi que foi o terceiro a morrer, de um grupo de pessoas seleto e muito importante pra mim: o grupo das mentes que contribuíram de alguma forma para o filme 2001: Uma Odisséia no Espaço.

Quem não sabe fica sabendo: O filme é em parte baseado em Nietzsche, e este é um escritor (filósofo) que admiro muito. Morreu lá em 1900. Kubrick morreu em 1999, e agora depois de Clarke sobrou só o
Minsky. (Poderíamos querer incluir o Osamu Tezuka na lista, mas não ajuda, ele faleceu em 1989.)

De repente eu me sinto que estão nos deixando meus mais admirados pensadores, e não surgem muitos novos no lugar. Em alguns anos vou ficar sozinho, perdido nessa rocha insípida...

Junto a esse sentimento veio ainda uma percepção que já tive a algum tempo, de que tem tantas coisas legais do anos 60 de que eu gosto muito, mas relativamente menos coisas contemporâneas. (não só dos 60, eu tenho uma queda pelos anos 20 tb) O 2001 é um filme inigualável, e tem muito poucas produções modernas que chegam perto de me agradar tanto quanto ele. Foi lançado em 1968.

Mais ou menos na mesma época, Minsky lançou um livro que é muito falado na área de redes neuronais (ou redes neurais), chamado Perceptrons. Ele é muito falado, mas é MAL-falado. Por algum motivo bizarro, que foge à compreensão humana, as pessoas falam do livro sem tê-lo lido, e ficam repetindo inverdades. Fala-se que o livro traria "hipóteses" que teriam colocado em estase a pesquisa em redes neuronais (e outras coisas similares), e que depois teriam sido provadas falsas.

Mentira. O livro traz resultados ólidos que valem até hoje. Mais do que isso, fala de técnicas par ao uso dos perceptros que se diz só terem sido descobertas mais tarde...

Ninguém leu o tal livro, e ele fala coisas que precisam ser ditas hoje em dia. Ele toca em questões que ainda são atuais!...

Coicidentemente, li a pouco um artigo relacionado à morte do Clarke, e caí nessa entrevista com o Stephen wolfram (não é segredo pra ninguém que eu o admiro em alguns aspectos, mas me desentendo com ele às vezes). Nessa entrevista, ele fala sobre ainda não termos chegado a construir algo semelhante ao HAL9000. Ele fala justamente que pode ser que tenhamos deixado algo escapar, algo que podíamos ter visto a 20 anos atrás. Não quero com isso implicar que o livro do Minsky é precisamente a coisa faltando, que se mais pessoas tivessem lido e menos pessoas falasem mentiras sem ler que então tudo seria diferentes, mas é digno de nota que o Wolfram esteja levantando a hipótese de que pode se tratar de um natural "lapso de atenção" da comunidade científica, e que ao mesmo tempo eu sinta que estamos de fato cometendo esse tipo de erro com o Perceptrons.

E não é só o Perceptrons, meu sentimento vai além. São outras coisas ali dos anos 50 e 60 que parece que não "sobreviveram" ao anos 90 e 2000, e são às vezes "reinventados", ou tomados de uma forma que considero errônea... E isso tudo faz a gente perder tempo. Tempo precioso...

Nesse vídeo que o Clarke gravou após compeltar sua derradeira revolução ao redor do Sol, ele tenta ser otimista, e fala sobre como que é legal que a viagem espacial turística esteja a ponto de se tornar uma realidade. Mas convenhamos, não é meio vergonhoso que a "corrida espacial" tenha passado por um certo congelamento lá nos anos 70 e 80?... Vá lá, tivemos missões não-tripuladas, mas eu não sou capaz de ver aqui neste momento da história deste meu ponto de vista, que as coisas tenham se dado de forma contínua, monotônica... Não acho que a exploração espacial dos anos 80 tenha sido uma continuação natural daquele desenvolvimento entusiasmante dos anos 60, quando já se esperava pelo vôo espacial civil. Precisou se passarem uns 30 anos até que se falar nisso tenha começado a se tornar uma realidade (o X prize começou em 1996).

Enfim, o falecimento do Clarke está me trazendo todo o tipo de sentimento de solidão e descontentamento, mas também de esperança e "boas memórias"... Coisas da vida.

***

A vida continua. No final da mensagem do Clarke ele menciona um belo poema de Rudyard Kipling. Kipling era um inglês-nascido-na-Índia, e faz alguns dias que eu coincidentemente li um pouquinho sobre ele na Wikipédia, por causa da agitação que rolou / está rolando em Myanmar. Ele escreveu um poema chamado Mandalay, que é uma cidade grande de lá.

Ele foi o primeiro anglófono a ganhar um prêmio nobel, e é até hoje o mais jovem laureado na área (42 anos). O poema que o Clarke cita é exatamente tudo o que eu estava precisando ouvir.


The Appeal (Kipling)

If I have given you delight
By aught that I have done,
Let me lie quiet in that night
Which shall be yours anon:

And for the little, little, span
The dead are born in mind,
Seek not to question other than
The books I leave behind.


Que traduzo de forma inventiva, em tributo...

O Apêlo

Se lhe agradei ao menos
por algo que tenha feito.
Me deixe ao noturno leito
que logo dividiremos.

E por um tempo breve e fugaz
os mortos surgem em mente.
Peço questione somente
os livros que deixei pra trás.



Agora, procurando pelo texto do poema, esbarrei numas coisas interessantes. Acontece que a figura de Kipling é um tanto quanto controversa. Por um lado ele escreveu e criou uma porção de coisas positivas, legais e bonitinhas como o Mowgli. Mas por outro ele é considerado por alguns como um prenúncio do imprialismo britânico. Em especial, parece que George Orwell dizia isso. Ele, que não só autorou 1984 como também o livro maizomenos autobiográfico Burmese Days.

Kipling escreveu o infame poema White Man's Burden, e isto não passaria de uma curiosidade se não fosse o fato de que esta expressão aparece no filme The Shining, do Kubrick!!... É inclusive uma das pistas para se ver que o filme fala sobre a colonização da América (claro que nada é tão simples assim, vocês sabem. Ou deviam saber...)

Kipling também tem alguns poemas (como esse) que tocam na questão da tecnologia de uma forma singular, que certamente interessará muito aos fãs de 2001.

Pra finalizar, folheando aleatoriamente pela Internet fiquei sabendo só agora que a (última) esposa do Kubrick, e o rimaõ dela que produziu seus últimos filmes, eram parentes de um certo diretor alemão que serviu (com ignoto nível de satisfação) ao regime de Hitler. Essas coisas todas, Clarke, Kipling, Kubrick e Hitler, estão interconectadas, mas só as pessoas que brilham é que percebem.

2008/03/17


Harpão sem ponta

Este post faz parte da iniciativa de Blogagem Inédita do InterNey.net. Como eu considero que a maioria senão todos meus posts usuais já são suficientemente “inéditos” mesmo que não necessariamente interessantes, o que eu fiz foi guardar pra publicar hoje uma pequena peça de ficção que escrevi... Espero que gostem!

((Este texto é melhor visualizado na formatação original, aqui...))


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-- HARPÃO SEM PONTA --
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um conto de fantasismo realístico,
por Nicolau Werneck <nwerneck@usp.br> (06/03/2008)


F entrou em um bar/restaurante pouco depois das 15:20. Incerto sobre a adequação ou não de sentar-se a uma das mesas, que são utilizadas com freqüência mesmo é no horário do almoço, F senta-se no bar, no segundo banquinho antes do fim, próximo às mesas. Talvez até fosse ainda, segundo os critérios dos freqüentadores do recinto, o horário do almoço. Talvez até isso não fizesse a mínima diferença. Mas F estava incerto, e observar as atitudes de outros clientes e dos funcionários não o ajudou a esclarecer absolutamente nada. Todos pareciam muito certos entre si de que tudo estava normal e na mais perfeita ordem, mas F não sabia dizer qual ordem seria esta.

E no final das contas nem mesmo importava nada disso porque F não queria almoçar direito não, queria comer uma porcaria qualquer e voltar pro trabalho. O único motivo porque não estava lá naquele exato momento é que seu escritório havia sido tomado por uma força-tarefa de funcionárias do setor de limpeza, que foram agendadas para encerar o local ali naquele momento.

E não fazia mal também, porque F podia perfeitamente dar uma pausa ali naquele momento, e podia também levar seu computador portátil para continuar trabalhando no cafezinho perto do escritório. Enfim, estava ele ali, e iria consumir apenas um salgado qualquer, alguma bebida qualquer — de preferência algo saudável — talvez depois um café, e pronto.

Pediu uma coxinha e um suco/refresco sabor amarelo. A coxinha era comum, sem Catupiry. F ia com freqüência naquele lugar, e jamais conseguiu adivinhar quando que tinha ou não tinha a coxinha com Catupiry, para dar preferência a estes horários, ou mesmo pra não precisar sempre perguntar às balconistas, ou ficar se perguntando se haveria ou não... Mas não tem problema também, porque as duas são boas, e a sem Catupiry talvez até fosse mais saudável do que a outra. Mas era sempre uma pena, porque ali eles usam Catupiry de verdade, não é requeijão não, apesar de poucas pessoas se importarem com a diferença. Aliás, uma vez F até ficou desconfiado que os próprios donos do estabelecimento ali não tinham sequer a menor idéia de que havia esta diferença.

Tendo comido, F resolveu então pedir mais um café. O café de lá não tinha nada de mais, a xícara não era das preferidas de F, mas o produto em si era razoavelmente gostoso. O café veio rápido, ao contrário de uma outra ocasião em que ainda era mais a hora do almoço, e tinha uns dois grupos de pessoas pedindo café ao mesmo tempo e o dela acabou demorando no meio da confusão.

Pretendendo comer junto do café um docinho que estava em sua bolsa, F decidiu pedir um copo de água mineral, seguindo o costume que começou a adquirir depois de começar a frequentar alguns cafezinhos mais chics por aí, onde sempre se serve um copinho de água junto da infusão ritual.

Na rua, F viu antes passar um guarda desses que andam de bicicleta, usando shortinhos de lycra e óculos arrojados parecidos com olhos de alienígenas dos piores filmes baseados em livros do Stephen King.

“Ei, por favor, você pode servir pra mim um copo aí dessa água mineral?”, perguntou F.

“Hein?”, respondeu inquisitivamente a atendente atrás do bar.

“Me vê um copo de água mineral, por favor.”

“Aaah tá!... Não.”

“Ah...” finalizou atônito o consumidor fracassado. F já havia tomado daquela água antes, pedira pra mesma atendente semana passada, se não depois. Pagou oitenta centavos, ele estava certo disso!... O copo era daqueles de aproximadamente quinze centímetros de altura, com a boca ligeiramente estreitada, um pouco como nas bainhas da calça de uma antiga zoot suit estadunidense. Era o mesmo copo normal de se utilizar ali para sucos à tarde, sendo que pela manhã o normal era um outro copo, daqueles que tem um alargamento abrupto a um terço da boca.

F procurou pelo cardápio, meio conformado e meio desconsolado. No verso da impressão plastificada e rígida lia-se com clareza: “água mineral (copo) ... R$0,80”. Mas que sandice seria esta?

F inquiriu novamente a atendente, que ao atendê-lo dava a impressão de que era a primeira vez, de que eles não haviam acabado de passar por exatamente o mesmo processo poucos instantes atrás.

“Ei... Me vê um copo de água mineral, por favor?“

“Água?”

“É, daquela garrafa ali, ó, vocês não vendem? Me dá um copo dessa água aí dessa garrafa.”

F indicava a garrafa de forma polida e comedida inicialmente, mas depois de um tempo apontou de uma forma mais ilustrativa, clara, inambígua e direta. Um apontar de dedos quase prolixo. A garrafa de plástico transparente carregava originalmente um conteúdo com um volume nominal de mil e setecentos mililitros. O formato da garrafa algo entre o cilindro de alguns ínvólucros semelhantes de bebidas gaseificadas, e o encurvamento tradicional de garrafas feitas com materiais convencionais, como vidro ou cerâmica. A tampa da garrafa trazia inscrições na cor vermelha, indicando que tratava-se de água com gás. O rótulo também tinha coisas em vermelho, e trazia uma logomarca elíptica com ainda as cores azul, branco e cinza/prateado. Vinha escrito claramente a natureza de seu conteúdo: “Água Mineurval”.

A garrafa encontrava-se já parcialmente consumida, com o nível da água dentro dela chegando a quase exatamente a metade da altura da embalagem, o que significava obviamente que ainda não deveria ter sido consumido mais da metade do volume total da garrafa, por causa do formato quase cônico dela. Ainda mais considerando-se que a embalagem vem da fábrica com um pouco de ar dentro, uma quantidade que varia um pouco aleatoriamente mas pode chegar a tomar toda a região a uns 2 centímetros da boca da garrafa. F estava convicto de que aquela garrafa havia sido consumida por outros clientes, servidos por outros antendentes, senão por aquela mesma, e estava certo de que a quantidade de água presente na garrafa era perfeitamente o bastante para atender às imposições de seu pedido.

E isso tudo nem fazia a menor diferença, a quantidade de água na garrafa. Nem mesmo importava na verdade aquela garrafa estar ali atrás do balcão! E ainda mais do que isso: a garrafa estava ali, e estava parcialmente consumida, provando seu uso anterior. Aliás, consumida em seguramente menos que a metade do seu volume nominal de conteúdo, o que se pode provar pela altura no nível estar logo acima da metade da altura da garrafa, que é aproximadamente cônica. Mas isso aí nem vem ao caso.

A tampa da garrafa ainda mostrava claramente que esta havia sido aberta, pois era possível ver as curtas rebarbinhas esbranquiçadas que às vezes ficam saindo pra fora da beiradinha dela, e do lacre que vem grudado. As rebarbas da tampa desencontradas das rebarbas do lacre, demonstrando uma rotação relativa entre os dois objetos a partir de suas posições originais antes da abertura. E a garrafa ainda estava ligeiramente amassada, daquele jeito que desamassa no momento que você segura pra servir (algo como um multivibrador biestável). F imaginou até que alguém poderia estar naquele momento bebendo um copo servido daquela garrafa, e quase tentou observar se não haviam manchas de condensação sobre a garrafa, com marcas de dedos no meio, que às vezes se formam quando servimos e que esvanecem em decaimento exponencial depois que colocamos a garrafa de volta sobre a mesa.

“Ih, essa água aí eu não sei direito não... Não sei.”

“Aqui no cardápio, ó. É essa água aí! Outro dia mesmo eu até tomei.”

Nisso o café já tava até ficando frio, né. Mas isso não importa muito não, não faço questão de café muito quente, às vezes até tomo frio mesmo, o que importa é mais o gosto, o açúcar e a cafeína.

E a atendente: “Mas ela tá tampada, a garrafa.”

“Não ó. Já abriram ela.”

“Hein??”

“Olha ali, já abriram essa garrafa, ela já tá até meio vazia.” Ou meio cheia, não importa.

“Ah, sim, mas é que ela está tampada, tem que destampar, precisa abrir ela para servir.”

“Então...”

“Eu não sei abrir a tampa não... Tem que falar com a Neurva, que ela sabe. Espera ela atender ali, e ela já vê.”

“Beleza, falou.”

“Hein?”

“Tá bom, obrigado...”

Já com o seu café pela metade, e o doce em um terço ou talvez dois quintos, F esperava calmamente pela outra atendente que deveria resolver tudo quando chegasse. Não que ele se importasse muito. Mas não era possível que fosse tão difícil servir essa água. F estava determinado a ser servido, até para tentar evitar essas complicações no futuro. De repente era só pedir pra essa outra, e ela sempre serviria sem problemas, a tal Neurva. Mas F tem uma má memória pra nomes, tinha que ver depois se ia lembrar.

Chegou a outra garçonete.

“Ei, tudo bem?... Pega pra mim um copo dessa água mineral aí?...”

“Mas eu não consigo abrir essa tampa não!”

“Ah, tá, é que ela ali disse... Mas será que não tem jeito? Você não pode pegar ela pra mim, e eu mesmo abro?...”

A face da atendente espressava de repente muita preocupação e empatia, olhando pros lados e para F e para o balcão e para a garrafa.

“Ih, não sei não... Tem que ver... É que é difícil... E se como que fica??”

F agora apenas fitava a cena, quase que como se estivesse assistindo a uma peça de teatro sendo ensaiada ou encenada, talvez improvisada à sua volta. A garçonete prosseguiu...

“Tinha que ver com ele ali, mas acho que eles não costumam deixar. A gente nunca faz assim, sabe.”

F ensaiou um diálogo na sua mente: “Mas então. Se vocês nunca fazem assim, deixando o cliente se servir, é porque a maneira como vocês sempre fazem é vocês servirem. Como diabos pode ser agora que não tenha quem possa abrir essa MALDITA” ele retirou a palavra forte do diálogo ensaiado em sua mente. “...abrir essa garrafa?” Ele não aproveitou sequer uma palavra do diálogo ensaiado na cabeça. Mas não faz mal, não tem importância.

“Tá, então. Valeu.”

Pela cara da atendente, F percebeu que ela não havia entendido o agradecimento, mas não se importou. Não importa, porque não importava.

F ficou lá, desapontado. Mas como seria possível? A água ali do lado, era só abrir a garrafa, servir e pronto. Ele pagava até mais, pagava um real. Pagariam talvez o preço de uma latinha de refrigerante, que estavam evitando beber porque não é muito saudável. Mas não tinha nem como... E a água ali parada, não servia nem pros mosquitos da dengue se reproduzirem, já que o invólucro estava fechado.

Parou por um momento, pensou, olhou para os lados. Uma das atendentes ia de um lado para o outro resolvendo coisas distantes. A outra fazia algo parada meio de lado, olhando para a direção onde estava F, mas não exatamente para ele.

Então F pegou a garrafa, um copo, e abriu a garrafa com a maior naturalidade. Serviu sua porção, fechou a garrafa e a devolveu para seu lugar. Naturalmente, sem pressa nem cuidado.

Se alguém viu, não ligou. Um tempo depois, F pediu a conta. A conta veio errada. Veio a conta de uma outra pessoa, e não só isso: além de ser a conta dessa outra pessoa, ela estava mesmo errada. Tinha um produto que essa outra pessoa nao tinha pedido, mas até aí tudo bem, porque era por causa de um outro produto que nao estava cadastrado, e aí colocaram outro do mesmo preço no lugar. Esse tava certo, na verdade. Só que aí tinha duas vezes uma outra coisa que esse outro cliente pediu uma vez, e não veio, aí ele pediu de novo, e só trouxeram da segunda vez, mas cadastraram nas duas vezes que ele pediu.

Mas isso tudo não importa, o que importa é a coincidência que se deu, que é o fato peculiar dessa história/conto, a única razão porque ela merece ser contada e ouvida, e porque isso tudo não é apenas um relato banal do dia de uma pessoa mas sim um caso interessante, digno de nota e atenção. Acontece que o valor que estava naquela conta era exatamente o que F deveria pagar pelo seu lanche completo, inclusive a água que ele pegou, que sairia pelos oitenta centavos de direito. Se pagasse aquela conta, F pagaria pelo seu lanche com precisão, e ainda não precisaria explicar nada pra ninguém, sobre ter ou não pegado a garrafa ele mesmo.

F pagou. Enquanto nosso protagonista caminhava do caixa de volta até o lugar onde estava sentado, ouviu atrás o tal outro cliente pagando sua conta. O outro cliente explicou o que havia pedido, e pagou corretamente também a sua conta. Tornou-se assim mais um herói nesta história, um semideus com direito a ser imortalizado em desenhos de ânforas/vasos da era clássica.

F sentou-se novamente em seu banco, no bar. A xícara vazia ainda estava ali, com um resto de açúcar no fundo, calorias não-consumidas. Seu livro aberto, virado com a capa pra cima, estava ao lado. F se sentou e voltou a ler o livro. Mas deteu-se por um momento, e observou novamente a garrafa por cima do livro. Observou o anel ondulante desenhado na interface tríplice entre o líquido, o ar e o plástico. Observou a concavidade sutil da água sobre a mesa no ponto em que ela encosta na base da garrafa, causada pelas caracteríticas de viscosidade e tensão superficial do líquido. Aquela agüinha entre a garrafa e a mesa que às vezes deixa uma marca parecida com uma flor quando a garrafa é levantada.

Ele olhou pra garrafa, olhou pro livro, pro balcão, pras atendentes, pros lados... “O que vai acontecer se eu simplesmente pegar essa garrafa e levar embora?”, F pensou. Considerou, mas desistiu. Aí então levantou-se e pegou a garrafa. Pegou e colocou dentro de sua mochila com naturalidade, sem pressa nem perfeição. Fechou o acessório, que levou às costas, e saiu do bar/restaurante. Ganhou a calçada/rua. Uma calçada mal-feita, quebrada e esquecida, e dividida igualmente (ou não) entre pedestres e veículos.

Na esquina, F abriu a garrafa e começou a beber seu conteúdo pelo gargalo. Não sentia qualquer tipo de satisfação, nem pelo furto bem-sucedido, nem por finalmente beber sua almejada água, saciando algum desejo profundo que não possuía. Não tentava também se livrar da prova do possível crime. Ele simplesmente bebia a água porque é isso que se faz com a água: bebe-se-a.

Um transeunte/cidadão se aproximou, observou o rótulo, e perguntou: “É água com gás?”

F confirmou: “É...”

“Água sem gás é melhor.”, pronunciou o transeunte enquanto fazia uma cara meio de decepção meio de intrigado.

A asserção portava ao fundo um tênue tom de proposição e de pedido de confirmação. F respondeu em altura e volume baixos.

“Né não, sô...”

“Hein?”


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