2008/06/02


A insustentável familiaridade das coisas, e a eterna estranheza dos seres

Tudo que é muito novo parece estranho. Do contrário não era novo. Quanto mais novo, mais estranho, e se algo novo é facilmente compreendido, é fácil de deixar de ser estranho, quer dizer que não era tão novo assim. Isso tem a ver com teoria da informação.

Por outro lado, conforme as coisas vão ficando velhas elas também vão ficando estranhas. Vá lá, algumas coisas são antigas, mas permanecem "atuais". Outras ficam démodé, se tornam ultrapassadas, são paulatinamente esquecidas pra valer... Às vezes até numa velocidade espantosa, especialmente quando substituídas por alternativas.

Assim, tudo o que familiar é velho o suficiente pra ter sido "assimilado", mas novo o bastante para permancer atual. Nossa cultura geral é basicamente constituída por essas coisas nem tão velhas e nem tão novas. E cada coisa descoberta segue esse ciclo de vida... (Às vezes podendo ser redescobertas, às vezes inclusive com nomes diferentes.) Mas tanto coisas muito novas quanto muito velhas são estranhas.

Isso explica, por exemplo, meu gosto por estudar história. O que eu curto não são simplesmente novas tecnologias, ou como dizia no meu inesquecível guia de inscrição no vestibular da UFMG: "A arte de lidar com a tecnologia de ponta". Eu gosto é de estudar coisas que me parecem estranhas, até elas deixarem de sê-lo, sejam novas ou velhas. (Claro que às vezes é mais fácil estudar a velhas, porque sempre sobra uma certa influência.) Na verdade eu gosto de estudar qualquer coisa, mas as menos estranhas são inerentemente mais fáceis e menos interessantes, requerendo menos tempo e trabalho, e recompensando menos.

Tava pensando nisso por causa desse livro do 2600 que mencionei antes. No livro existem diversos artigos escritos quando as tecnologias ali estavam chegando. Eram portanto coisas estranhas, sendo estudadas pelos hackers buscando desvendá-las. Hoje, não muito mais de 20 anos depois, muitas destas tecnologias novas, que eram estranhas na época, são hoje estranhas porque se tornaram obsoletas. O sentimento de um hacker jovem que ler o livro vai ser sem dúvida diferente do velho, que desbravou a tal tecnologia, mas existe algo em comum, existe um sentimento de "descoberta", seja como engenharia, ou seja como arqueologia.

O mais engraçado é o curto espaço de tempo: em 20 anos essas certas tecnologias logo passaram de novas para velhas. Só não foram estranhas por um período muito curto da vida delas, e mesmo assim para muito poucas pessoas. Tem coisas ali que foram e sempre serão consideradas estranhas para a grande maioria das pessoas, em qualquer época, porque nunca foram devidamente assimiladas antes de se tornarem obsoletas.

***

Outro dia tava assistindo NatGeo, e passou um programa de dois caras que saem viajando pelo mundo aprontando altas prezepadas, fazendo projetos para demonstrar a viabilidade de fontes ditas “alternativas” de energia. Aliás, nos Estazunidos tem acontecido muito isso ultimamente, a produção de programas de TV buscando fixar bem na mente das pessoas que qualquer coisa diferente de petróleo e carvão são fontes alternativas de energia, e não fontes de energia iguais a quaisquer outras.


Pois bem, umas das coisas que os caras fizeram foi ir lá na Espanha (um dos países que mais investe em energia eólica hoje, e a terra do Dom Quixote que lutava contra moínhos-de-vento), e ensinar prum fazendeiro lá como fazer um cata-vento pra puxar água de um fosso pra dar de beber às suas rezes. Os caras montaram um, estilo estadunidense (daqueles redondinhos) todo de metal (!), fizeram o processo todo parecer muito difícil e desafiador, e ainda falaram uma porção de conceitos errados (em especial falaram que a bomba precisa fazer uma pressão pra baixo pra fechar a válvula, enquanto que a válvula fecha-se naturalmente pela pressão do desnível entre a água sendo puxada e a fonte.)

Mas no final, conseguiram fazer a bomba movida pelo vento.. Demonstraram o uso dessa tecnologia mais velha do que a Sé de Braga, e mais confiável. Os caras ficaram absolutamente surpresos, estupefatos, exclamando “uau! Olha só conseguimos reoslver o problema sem utilizar nem combustíve nem energia elétrica!!”

Quer dizer, é nesse mundo que estamos hoje. Qualquer equipamento que não funcione movido por combustível (especialmente no Estazunidos que não tem o potencial hidro nosso, e nem depende muito de nuclear) e ainda que não utiliza energia elétrica, é visto como estranho. Porque na cabeça deles isso “ficou pra trás”.

***

Tem gente que vejo na escola de engenharia que chega a encarar com certa suspeita sistemas de controle que não são baseados em microcontroladores, com programinhas que tratam apenas de digitalizações de sinais. Coisas analógicas já são lá vistas por algum com desconfiança e estranheza, ainda mais se não forem baseados em amp-ops, mas sim transistores antigões, BJTs. Válvula então nem pensar. É certo que elas possuem desvantagens terríveis, mas nunca podemos nos esquecer de que elas funcionam, pôxa vida!...

***

Por uma caso esse assunto todo tem a ver com esse texto muito engraçado que Lia recomendou agora a pouco no Twitter!... :) (e um outro post relevante da mesma.)


Faça um hacker feliz

Faça um hacker feliz... Melhor ainda, me faça feliz (não que eu seja um hacker, quanto a isto não existem evidências).

Entre no link
http://www.wiley.com/WileyCDA/WileyTitle/productCd-0470294191.html
e me dê de presente uma cópia desse livro, uma coletânea de artigos da revista 2600 (que está completando 24 anos).

2008/05/28


O mais terrível e sutil dos pecados

O mais terrível e sutil dos pecados é a híbris. Sutil porque tem que ser velho pra sentir bem sua pecadice. Tem que ser um professor de melancolia. Terrível, porque... bem, quando você entender você vai saber.

Híbris é uma certa desmesura, descortesia, destempero, indelicadeza, mas cometida numa hora catalítica, que torna esta indelicadeza especialmente inadequada. Eu entendo como algo que por muitos anos vinha já investigando, e agora identifiquei como sendo este antigo e importantíssimo conceito grego clássico. Trata-se do que (usualmente) entendemos por "tirar onda"!... É aquela coisa que te deixa assim: "Pô, aí, sacanagem!..."

***

Muitas coisas que se falam ser híbris, não são. Em especial várias listadas ali na Wikipédia:
1_ O John Nash desconsolado por achar que não podia perder. Ora, não existe algo como "a híbris do perdedor", porque a híbris é um crime que só pode ser cometido pelo ganhador. O sujeito que ganhou, ao zoar da cara do Nash, pode até quem sabe ter cometido ele mesmo um ato de híbris.
2_ Xerxes, ao enviar seus melhores soldados para tentar matar os 300 de Esparta nas Termópilas, não cometeu híbris. E muito menos "caiu numa armadilha". Ele fez uma manobra militar compreensível. Híbris foi depois, quando ele mandou decapitar e crucificar o corpo do rei Leônidas. Aliás, vilipêndio a cadáver é a epítome da híbris. [Essa deve ser a frase mais linda que eu já escrevi na vida...] Híbris no sentido mais amplo teria sido por exemplo não apenas dar uma grana para Efialtes, mas ainda dar algum bom cargo administrativo para ele nas terras conquistadas, ou outro disparate do tipo.
3_ O Doutor destino não cobre seu rosto devido a híbris... Ele é é vaidoso e arrogante. Mas desconheço que jamais tenha tratado nenhum dos quatro fantásticos ou nenhum arauto de Galactus da mesma forma como Odisseu tratou o cíclope.

Resumindo, lá nos Estados Unidos eles tentam enxergar isso como um tipo de mau perdedor, que não aceita seu lugar, mas é o contrário: é um mau ganhador, que se coloca num lugar alto demais, de onde pode sofrer uma queda ainda pior. Como "winners" natos, tentam redefinir o significado da híbris para fingir que não há forma de cometer este pecado, que eles estimam tanto. São o "number one" em sua prática.

***

Quando cheguei aqui em São Paulo, ouvia muito falar que corintiano é chato. Não sei se cheguei em mau momento, mas não tenho achado não. Tenho achando os corintianos muito simpáticos, torcedores "do coração". O torcedor usual torce para seu time, e este em troca lhe "recompensa" com vitórias e títulos. No caso do Corinthians (e outros poucos), o torcedor torce e tem esse amor correspondido, como se o Corinthians torcesse pro corintianos em retorno.

Vi no dia do último jogo que o Timão jogou com alguma esperança de não ser rebaixado um ônibus cheio de torcedores, e foi uma das raríssimas vezes na vida que senti vontade de estar ali torcendo junto daquele pessoal.

Mas aí eles perderam. No dia seguinte uma horda de torcedores do Palmeiras (que não tinha jogado, mas tava em boa posição na vida) invadiu as ruas, gritando, xingando, buzinando. Passou por mim um carro Uno com palmeirenses da classe média, pararam no ponto de ônibus, e ficaram gritando, falando alto mesmo, enumerando as glórias palmerenses e os vexames do Curingão. Não senti vontade nenhuma de estar ali junto desse pessoal. No banco do carona, uma menina jovem, branquinha, bonita, de cabelo comprido castanho, com o inegável uniforme verdinho olhou pra mim e pessoas do meu lado com olhos arregalados, falando alto uma série de impropriedades. É "cachorra na balada"?... Não sei, mas uma coisa eu digo: é híbris!...

***

Híbris é o cara que canta pneu depois da barbeiragem, cospe no chão depois de te derrubar, te dá aquela olhada com as sombrancelhas arqueadas usando óculos "matrix".

[Essa agora é viagem total] Frases comuns à prática da híbris são: "Mas também..." e "você sabe o que que eu tou falando". (Comuns mas nem necessárias ou muito menos suficientes.)

2008/05/27


Cansado mas alerta. Estratégia...

É um alívio ter nascido no Brasil em 1981, já em tempos de abertura, anistia, diretas-já e Tancredo Neves. Tenho a sorte de poder ver a ditadura e ler sobre suas atrocidades com a respeitosa distância de um estudante de história, assim como vejo o fascismo da Europa da metade do século XX... Pra mim nazista são os mocinhos maus do Indiana Jones, e estudante clandestino é o Cássio Gabus Mendes no Anos Rebeldes. Talvez por essa distância, tenha conseguido vencer os traumas justificáveis carregados por quem vivenciou essas coisas, e consiga ver o mundo com um pouco mais de maturidade, sem morrer de medo de acidentalmente tecer elogios a algo que possa ser associado ao fascismo, ditadura, "direitismo" e outros males. E olha, são poucos os brasileiros que conheço que considero serem capazes de sair dessa de fazer uma classificação binária e simplória de o que é direita e esquerda, e se permitem falar das coisas com a verdadeira complexidade que elas possuem. Um deles é o Arnaldo Jabor.

Um caso desses, de uma coisa complexa que é mal-interpretada por brasileiros traumatizados e preconceituosos, que falham em apreciar as coisas com o detalhamento que elas merecem, é o filme Tropa de Elite. Não é um filme maravilhoso, nenhum grande clássico da história da arte, mas deve ser o filme mais injustiçado de que ouvi falar ultimamente. Um filme bem-feito, com um roteiro extremamente sóbrio e complexo, passível de observações intelectuais, foi jogado no lixo pela intelectualidade brasileira que o deveria ter apreciado melhor. Foi acusado de ser um filme "fascista", de fazer apologia à violência policial, e de "dar à classe média o que eles tavam querendo", que seria algo como um filme do rambo em que os russos são o CV.

Só quem eu sei que fugiu de enquadrar o filme em pontos cardinais (esquerda direita, pra cima pra baixo) foi mesmo o Jabor... Ele fez duas crônicas (uma duas), e cito um trecho de uma que diz bem o que estou em vão tentando dizer com outras palavras:


Tinha lido nos jornais a eterna polêmica de nossos intelectuais dualistas: progressista ou fascista? Esquerda ou direita? Essa gente só consegue raciocinar com um cuco na cabeça, batendo o pêndulo como um colhão pendurado, tentando enquadrar a realidade num conteúdo ideológico qualquer.


Poisé. Quanta babaquice viu... Olha, não sei de nada mais ingênuo que uma pessoa possa fazer ao criticar um filme (ou obra narrativa qualquer) do que sair falando que "o filme insinua que TODOS xx são yyy"!... Taí algo que se fez muito ao criticarem o Tropa. Cito alguns blogs de amigos de amigos meus. Um diz que o filme é muito "caricato", e que representa muito superficialmente os personagens, e que insinuaria que todas ONGS são criminosas e todos universitários maconheiros safados. Outro já apela mais pra questão do suposto "fascismo" pregado pelo filme, alegando que o filme seria algo como uma apologia contemporânea à nossa ditadura torturadora de outrora... E fala que o filme insinuaria que os policiais do BOPE são incorruptíveis.

Isso de falar que "o filme chamou todas ONGs de corruptas e todos policiais do BOPE de incorruptíveis" é extremamente infantil. Ora, o filme conta a história de um sub-grupo de personagens de um batalhão, num certo período de tempo, em que houve um envolvimento com uma certa ONG. Porque sair extrapolnado dizendo que o filme afirmou coisas sobre todos policiais e todas ONGs?? Como teria que ser o filme pra ser "justo"? Tinha que ter duas ONGs, uma bonita e uma feia, e tinha que ter dois policiais, um mocinho e um bandido, e tinha que ter também dois tipos de bandido, os malvados e os corrompidos pela sociedade... E além disso cada um desses tinha que ter pretos, brancos, índios e mulatos, loiros, morenos e carecas, homens e mulheres, senão também o filme taria falando que, por exmeplo todos policiais morenos e canhos do BOPE são incorruptíveis... (do BOPE, porque da polícia convencional mostrou bastante os corruptos.)

Não tem tempo de ficar sendo capitão planeta não, ficar representando um de cada. Cresçam. o cara contou uma história ali, de um capitão, mais dois policiais, mais um punhado de universitários, num certo morro, com uma certa ONG. São vocês que insinuam essas tais generalizações.

Aliás, por acaso o filme insinua também que todos capitães do BOPE tem crises nervosas? Insinua que todos ele brigam com a esposa grávida? Ora, tenho certeza de que ao menos o Azevedo, que tem DOOOIS filhos, não deve ter se separado da esposa quando esta teve o primeiro.

***

O filme possui uma formidável diversidade de personagens. Tem universitário MUITO safado (traficante), tem universitário só mais ou menos safado, tem os que realmente querem só ser legais (a moreninha que paquera lá com o policial)... Tem até mesmo um interessantíssimo personagem, que é o policial universitário.

Do lado da polícia, tem policial bandidão, tem o que se importa pouco, tem o que "se vende" pra trabalhar, em diferentes níveis. Tem várias histórias complicadas, não é nada simplório não. O filme é cheio de "áreas cinzas", essas dualidades maniqueístas infantis tão só na cabeça de quem viu cheio de preconceito.

***

Quanto à violência, fala-se muito que o filme seri aum grande espetáculo de sangue e horror, que seria um passatempo sádico para a classe média fascista que queria ver derramamento de sangue de pobre. Taé o Jabor falou isso. Isso não podia se rmais afastado da realidade.

Eu até concordaria se alguém me dissesse, por exemplo, que a violência foi banalizada no filme. Nem vi ninguém dizer isso!!... Mas se você reparar bem, assistir de novo sem ficar nervoso, com medo de talvez apoiar uma obra que seria algo como um Mein Kampf contemporâneo, vai ver que a violência passa às vezes só no fundo... Por exemplo, na memorável cena do "põe na conta do papa", não aparece o cidadão sendo executado. Em mais de um momento pegamos a cena de tortura já no final, e às vezes ela é só mencionada. Isso é MUITO diferente do que acontece no 24 horas, por exemplo, em que acompanhamos todo o processo do Jack Bauer decidindo fazer uma tortura, e fazer. Naquele seriado, o lance da tortura é intensamente explorado pelo diretor pra criar suspense, stress e todas emoções do filme. No Tropa de Elite isso não acontece.

Tem uma cena por exemplo em que o BOPE chega num pátio na favela, aparecem de surpresa levantando das sarjetas, e atiram antes de perguntar nos sentinelas do tráfico. Acho até que rola um que toma um tiro meio atrasado, uma cena muito marcante. Mas não marca pelo "stress" da tortura. Não é uma violência explorada com close-ups, câmeras lentas, ou com diálogos estilo homem-aranha.

Acho que o pessoal sentiu falta disso. O filme não tem diálogos assim, entre um policial e um traficante em que um fica questionando sobre o outro ser vagabundo, ou homossexual, ou de direita, ou sei lá o que mais que se gosta de falar em filme brasileiro, até que enfim o traficante puxa um revolver e fala algo como "Quer saber? Eu tou pouco me fudendo. Isso aí é o caraaalho, vai tomar no meio do seu cuuuu! Ahahaha!!" aí então o mocinho dá um tiro de sorte e pega na barriga do trafi, sendo atingido apenas de raspão no braço. Só porque não tem isso, esses diálogos existencialistas antes das mortes, o pessoal achou que é um filme "cruel", sei lá.

***

A cena lá do pátio, aliás, é importante porque tem o fogueteiro. Ninguém falou do fogueteiro, mas o fogueteiro é o personagem mais importante do filme. Será que de todos intelectuais por aí, tem que vir eu, engenheiro, pra notar uma certa semelhança nesse negócio todo de procurar o corpo do fogueteiro, com a preocupação de tragédias gregas com o corpo de pessoas mortas? Exemplo óbvio: Antígona.

O filme tem dessas coisas, mas ninguém deu a menor bola. Tem lá o Capitão tendo uma crise nervosa. As pessoas saíram falando do capitão Nascimento como um Chuck Norris brasileiro, como um Rambo (não no primeiro filme, óbvio), um Nico-acima-da-lei, mas ele não é isso!... Ele até pode ser sim um militar fodão e malvado quando é preciso, mas ele é não é um personagem sobre-humano, plano, propagandista. Ele é humano, tem problemas pessoais muito piores do que o homem-aranha (olha ele aí de novo), toma à vezes atitudes guiadas pela emoção, às vezes pela razão. Erra e acerta. E sofre com tudo isso boa parte do tempo, mas sempre encontra conforto em saber que é um bom profissional.

Esse negócio de sair falando do Capitão Nascimento como um Chuck Norris tupiniquim rolou só porque é engraçado. O filme não se resume a isso, de forma alguma. Tem lá cenas memoráveis de "ação militar"... Em especial, tem o trecho todo do treinamento do BOPE, que é algo quase que separado do resto do filme. Eu vi aquilo como uma interessante versão nacional da parte do treinamento do Apocalipse Now. Nem nacional, carioca. É muito legal ver, pra variar, oficiais brasileiros ao invés de gringos, falando com sotaque carioca coisas como "os senhores não são bem-vindos aqui". Mais do que isso, em todo o filme tivemos oportunidade de pensar um pouco sobre essa figura tão estranha e pouco conhecida: o policial e o militar brasileiros.

Sim, porque ser militar no Brasil é visto por alguns quase que como uma contradição. Afinal, toda a nata intelectual desse país se esforça para rechaçar impiedosamente qualquer filme em que estes cidadãos sejam retratados senão como bestas feras assassinas sem-mãe, seguidores de Mussolini ou defensores de interesses imperialistas estadunidenses. O Tropa de elite foi um parte um alívio de toda essa babaquice. Ou tentou ser, porque a reação foi apenas a esperada.

A proósitco, fiquei feliz com o que vi. Fiquei com uma impressão que nossa polícia, comparada com as anglo-saxônicas, adapta bem nosso jeitinho peculiar de ser.

***

Eu sinto é que toda essa reação negativa ao filme se deve aos fumantes de maconha formadores de opio-nião terem ficado tristes porque não foram os mocinhos do filme. Em geral o cinema, principalmente o brasileiro, trata fumantes de maconha como grandes heróis, únicos cidadãos a se preocuparem com a liberdade, a possuírem criatividade e a cultivarem outros valores relacionados. Nesse filme apareceram como nada demais, apenas pessoas que indiretamente contribuem para o problema da violência. Aí ficam putinhos em suas escolas de ciências humanas, citando sei lá que microrrelações de poder do Foucault pra tentar provar por a+b que o filme se tratava de um manifesto em prol da opressão do povo...

***

Quanto à questão da exploração barata da violência, a uma suposta "favela-exploitation", atendendo lá aos anseios dos jovens jogadores de Counter Strike, ao meu ver filmes como Carandiru e Cidade de Deus o fizeram muito mais, e foram no entanto super elogiados. Não rolou peitinho balançando do rodrigo santoro... Não tem aquela coisa toda do "mundo cão" tradicional do cinema nacional.

Tem, por outro lado, cenas da polícia subindo o morro ao som da música lá do Tihuana. Alguns chegaram a clamar que o filme era um "filme de ação barsileiro". Não achei não. São cenas de ação, mas são mais pra dar clima pro filme, não são o centro das atenções, não é o motivo de ser do filme. O motivo de ser é fogueteiro, são as narrações do Capitão falando da merda que é o trabalho dele, e é o policial-universitário tentando achar o lugar dele no mundo.

Infelizmente, os caras se vestem de preto. Dizem até que vai mudar agora, vão passar prum tal camuflado digitalizado. O filme criou essa imagem do "policial de Elite" brasileiro, que até então não existia. A gente só tinha idéia do que poderia ser uma SWAT estadunidense, por exemplo. E isso é legal, pelo mesmo motivo que é legal brincar de guerrinha quando a gente é criança. Aí virou moda, caiu na boca do povo, e os intelectuais prepotentes únicos-bastiões da democracia saíram falando que era nazismo, que aquele preto ali era o uniforme da SS, ou dos guardinhas do Mussolini... Talvez se eles se vestissem de cor-de-rosa, o filme se tornaria uma doideira cabeçuda, e aí sim seria apreciado pela nossa intelligenza, o "stablishment moral" comunista das universidades.

O problema todo é o preconceito contra o preto.

***

Em suma, infelizmente foi mais um daqueles textos extensos em que eu falo um monte de bobagem complicada tentado defender algo sofrendo acusações fáceis... Sou uma eterna vítima da retórica suja, pobre eu.

Assistam a droga do filme lá!!... Não é "nazista" não. Só não é mais um daqueles filmes brasileiros de favela-exploitation em que o mocinho é um maconheiro ladrão que namora uma puta. É um filme tanto ou mais complicado quanto a própria questão da polícia/favela/classe-média é. Qualquer simplificação está na cabeça dos críticos que não quiseram ver tudo, quiseram se posar de bacana-apático pros amiguinhos renegando o sucesso do filme, como sempre acontece aqui. "Ai ai, cansei desse Tropa de Elite"...

2008/05/26


Marcianos lunáticos

Uma coisa estranha sobre a sonda Fênix, e outras marcianas, é que o dia lá é um pouco maior do que aqui. Assim conforme o tempo vai passando nossos dias saem e entram em sincronia... (Quer dizer, sincronia "local", "percebida".)

Aí vai a idéia nerd do mês: Ia ser doido dar um jeito de acessar as leituras em tempo real da temperatura e iluminação detectados pela sonda, e controlar o seu ar condicionado e luzes do escritório pra te deixar no mesmo clima em que ela está em Marte!... Mas não achei nenhum lugar no site da NASA que tivesse algo parecido com um "streaming" dos sensores... :(

2008/05/24


O monte cumbuca da ilha do enxofre

Em filmes contemporâneos de propaganda estadunidense é muito comum se ouvir descrições emocionantes da batalha na ilha de Iwo Jima, (ou mais antiga e recentemente Iwo To). Fala-se que foi o momento em que os estadunidenses invadiram um “solo sagrado” japonês. Outro dia ouvi alguém falar ainda que o famoso monte Suribachi, com seu formato peculiar, seria considerado pelos japoneses um velho “bastião” das terras japonesas, mitológico atalaia insular, tendo sido vencido pela primeira vez pelo bravo e indômito Tio Sam. Algo como se houvesse ali uma tradição em resistência a invasões, como existe na Rússia com relação a forças vindas do ocidente (batalha do Neva, Napoleão e Hitler).

A importância que se dá para o que representava a ilha Iwo (jima ou to = ilha) só não é superada pela importância que se dá ao ataque a Pearl Harbor. Este retratado como um ataque sorrateiro que atingiu um alvo localizado dentro das fronteiras Estados Unidos da América, uma afronta à soberania do governo do Distrito de Columbia.

Vamos portanto meter o malho: Quanto ao Havaí, é sempre bom lembrar: Ele fica localizado no meião do Pacífico. Sua distância aos EUA, milhares de kilômetros, deve ser tipo metade da distância ao Japão. E existe um grande número de havaianos descendentes de japoneses, quem viu Karatê Kid sabe. Existem também havaianos nativos, filipinos e pessoas de várias outras ascendências... É um caldeirão de culturas!...

O Havaí só se tornou um dos estados unidos depois de um complicado processo: Em 1893 o reinado soberano foi deposto numa ação que envolveu estadunidenses vivendo lá dentro daquelas fronteiras, e rolou uma invasão dos marines por causa de um alegado risco à vida destes cidadãos durante uma crise política. Em 1986 o Havaí virou um "território" dos EUA, e foi apenas lá em 1959 que eles viraram de fato um estado, após um plebiscito meio questionável. Foi na verdade um ato imperialista. Em 1993 Bill Clinton até assinou um controverso "pedido de desculpas" pelo papel dos EUA na derrubada do legítimo governo que havia naquele país. Foi uma anexação de uma nação estrangeira, portanto, não diferente dos casos do Texas e dos estados confederados na dita na "guerra da secessão", que devia se chamar mais era "guerra de junção". (É uma sutil retórica. Um nome implica que tentou-se separar algo "naturalmente junto". O outro, "alternativo", que se tentou e conseguiu juntar duas coisas já separadas.)

Enfim. Foi apenas parte da expansão estadunidense complementada pela pouco conhecida guerra hispano-americana. Só queria dizer que Pearl Harbour não era tão território-americano assim... Não tanto quanto qualquer cidade da região da Nova Inglaterra, por exemplo. O ataque a Pearl Harbour não foi algo como seria o caso de um hipotético ataque a algum dos famosos arranha-céus de uma cidade como, por exemplo, New York City.

***
A história então vai assim: "depois do traiçoeira ataque a Pearl Harbour, uma afronta direta aos EUA por se tratar de seu território, eles foram reagindo, até que um dia chegaram à invasão de Iwo Jima, território sagrado japonês, em que se fincou a bandeira em uma montanha tão lendária quando o monte Fuji."

Porque invadiu-se Iwo Jima?... Se vc olhar no mapa, vai ver que é um ponto bastante estratégico. Quase a meio caminho entre as ilhas Marianas, e o Japão "de verdade". As Marianas foram dominadas pelos EUA antes de Iwo Jima (algumas delas eram posse dos EUA, foram invadidas pelo Japão, e depois retomadas pelos EUA). Isto já havia sido uma excelente vitória estratégica, porque permitia o ataque ao Japão com bombardeiros. Mas Iwo Jima é uma ilha relativamente grande, e tinha/tem um pequeno aeroporto, o que auxiliaria muito no suporte a tropas subindo pelo oceano, e foi basicamente por isso que foi invadida...

Mas além de ser um natural passo estratégico, a ilha Iwo também foi por acaso a primeira das ilhas invadidas pelos EUA durante a WWII que estava em posse do Japão já a muitos anos, bem antes da WWII. OK, era finalmente “território japonês”, mas o quão "japonesa" era mesmo essa ilha?? Será que era tipo Okinawa, onde nasceu o karatê do Sr. Miyagi?...

Vamos dar uma olhada no nome dela pra entender que tipo de lugar se tratava... "Iwo" é "enxofre"! Olha que legal, a velha "Iuodjáima" que os gringos gostam de repetir e repetir chama-se "ilha do enxofre"!... Acho que seria um pouco menos heróico ficar falando "Sulphur island" né?

E o famoso monte Suribachi? Dito uma "sagrada montanha que por anos protegeu o povo japonês de todo tipo de invasores até chegar o mighty american army"? Suribachi é um tipo de cumbuca, utilizada para moer coisas. Uma cumbuca! Engraçado que eu sempre olhei aquele formato peculiar, e pensei nisso também, agora descobri que os nativos concordavam. Era o monte cumbuca da ilha do enxofre.

Compare com o nome do monte Fuji, esse sim um monte "sagrado". Compare com o nome de Tokyo, que até mudou de nome conforme ficou mais importante. E a propósito: diz a Wikipédia que os habitantes da ilha utilizavam a palavra "to" para se referir à ilha, e não "jima" (não sei o quanto isso muda o significado). Os milicos japoneses chegaram lá falando jima, e colou. Isso demonstra como não era um lugar especialmente importante, mas sim "apenas mais uma" cidadezinha do interior, que teve a má-sorte de se tornar estratégica durante a guerra. Hoje parece que os habitantes estão fazendo valer sua preferência.

Não posso falar isso com certeza absoluta, mas eu sinto é que o único povo pra quem aquela montanha possui um status de local sagrado é o povo estadunidense, que inventou pra si mesmo um mito de grande glória militar naquela região.

Importante mesmo do ponto de vista cultural foi o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki. Nagasaki talvez ainda mais do que Hiroshima, por se localizar numa região de cidades históricas, bem mais antigas do que Tokyo e outras hoje maiores, e onde se diz que o Japão "nasceu"... Um pouco menos relevante, mas ainda bem mais do que Iwo Jima, é o caso de Okinawa, uma região com fama de ser meio "separada" do resto do Japão (tipo o Rio Grande do Sul pro Brasil e o Texas pros EEUU). Okinawa, além de geográfica e historicamente relevante, foi palco de uma batalha ainda mais sangrenta do que Iwo Jima, e que merece ser muito melhor conhecida. A Batalha do Enxofre só é tão famosa por causa da função que teve na política dos EUA durante a guerra, algo muito bem-retratado no filme Flags of Our Fathers.

Isso não é pra dizer que as mortes das dezenas de milhas de soldados e civis na ilha foi irrelevante comparada com outras. Foram todas lamentáveis e odiosas conseqüências da guerar, sem qualificações. O que quero alertar é que não podemos deixar esses exageros de se falar em "solo sagrado" e "montanha lendária" se espalharem. Isso é invencionice, é o vencedor imperialista tirando onda, é híbris!


Algumas primeiras charadas

OK, estou pegando gosto pela prática. Aqui vão algumas charadas:

aferesada:
No final do segundo tempo, o apito do juiz incomoda a multidão enfurecida. (3-2)

mesoclítica:
O animal arranhou uma letra na mão do menino. (2-1)

novíssima:
Então ostentei-me para o francês discutindo comigo, que demonstrava muito mau-humor e fumava observando a estrutura metálica. (3+1=2 2)


Um enigma do subterrâneo

Eu escrevi o último post sobre charadas porque achava que tinha inventado uma hoje de manhã, mas na verdade não é uma charada daquele tipo ali de baixo não... Portanto aqui vai meu "enigma"!...

Estação Ana Rosa / Livro inglês. (7 e 7 letras)

((Explicando melhor, a resposta é alguma coisa de 7 + 7 letras que é tanto algo representado pela estação Ana Rosa, quanto pelo conceito de um livro inglês...))

(((Preciso inventar um nome pra essas charadas...)))

2008/05/23


O verdadeiro charada brasileiro

Meu avô sempre conta que "no seu tempo" tinha costume de trocar charadas com amigos de um grupo de charadistas formado no Rio em uma livraria, ou coisa que o valha, em algum momento na metade do século passado. Existiam livrinhos de charadas, e as pessoas gostavam de inventar pra propor pros outros, como ocorre com outros tipos de quebra-cabeças. Não sei se foi algo desenvolvido por alguma revista específica, ou se é algo tradicional e antigo, gostaria de descobrir!...

Não é qualquer charada, "o que é o que é", adivinhação ou coisa que o valha. Era um tipo específico de charada, que não sei se tem algum outro nome mais específico, e que não sei quando e onde se desenvolveu, mas funciona da seguinte forma: A pessoa propõe uma frase que envolve duas palavras-chave que devem ser descobertas. É um passatempo similar a outros que envolvem palavras, como palavras-cruzadas, criptogramas, rébus, etc. Um bom charadista acaba conhecendo o mesmo tipo de vocabulário dos praticantes dessas outras artes... O mesmo tipo de palavras manjadas que acabam sendo muito utilizadas porque são escritas de formas convenientes!

Um exemplo de charada:

O exército consegue até desviar um curso natural de água, tamanha é sua capacidade. 2-2

resposta: pode + rio = poderio


Esta é uma charada do tipo novíssima. "Consegue" é "pode", "curso da água" é "rio". Concatenando dá "poderio", que corresponde a "capacidade", e mais do que isso, é um conceito envolvido na frase. O 2-2 é o número de sílabas de cada palavra-chave, uma diquinha...

Charadas podem ser classificadas de acordo com o tipo de restrição impostas entre estas palavras-chave, e como é a resposta. Eu sabia dessas classificações de ouvir meu avô falar. Hoje lembrei disso tudo, e resolvi ver se encontrava na Internet algum grande portal de charadas. Só encontrei UM único site com charadas, esse aqui, por sorte um site bastante completo. Achei também uma resposta de alguém num Yahoo perguntas da vida...

Lá vai então, copiando daquele site ali do Schwalf, a lista da classificações de charadas. Não sei de onde vieram, quem inventou etc, se alguém tiver informação por favor me avise!


  • sincopadas: Existe uma palavra maior, e uma menor obtida pela eliminação de algumas das sílabas da primeira. A dica é o número de sílabas da menor.
  • aferesadas: Duas palavras, a menor é a primeira sem a primeira sílaba.
  • casal ou dupla ou alexandrina: duas palavras de sentidos diferentes, mas que uma é a feminina da outra (ou uma é a masculina da outra, que seria feminina, você entendeu). Exemplo: "Era um objeto precioso aquele instrumento cortante", tesouro/tesoura.
  • novíssimas: Existem duas palavras-chave, e um conceito que é a concatenação delas. O conceito está contido na frase, como as palavras-chave (ou talvez de forma mais implícita). A dica é o número de sílabas de cada palavra.
  • mefistofélicas (nome maravilhoso): São como as novíssimas, mas a primeira sílaba da segunda palavra é a última da primeira, e são unidas por ela.
  • mesoclíticas: A segunda palavra é inserida no meio da primeira para formar o conceito.
  • metamorfoseadas: Uma palavra é a outra com uma letra substituída. A dica é o número de letras, e a posição da trocada. Exemplo: "A disputa mostrou o quanto ele era deselegante." 5(3) briga/brega.

E aí, quem anima de fazer uma lista de discussão de charadas? :)

***

Eu tou interessado em saber quem inventou isso tudo, porque é muito bacana, e não conheço nada parecido em outras línguas... Vou até mandar pro Douglas Hofstadter pra ver qq ele acha!