2008/05/09


Sobre ciência e capitalismo

Reprodução de um comentário / carta que fiz em resposta a um post-em-um-blog / entrevista-numa-revista. (apriveitando pra conçertar uns erinhos de portuguéz!)
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Prezado Professor Schwartzman

Gostaria de somar minha humilde voz discente à do professor Shellar. O comentário sobre a física de partículas foi infeliz. Um ponto geral deveria permanecer assim: geral. Especificar uma área de estudos qualquer, tachando seus praticantes de fracassados inúteis, seria de mau gosto mesmo se fosse verdade -- o que está longe de ser.

Existem diversos problemas nesta afirmação. Primeiro, é um absurdo resumir a pesquisa em física de partículas à realização de seus experimentos, alguns deles notoriamente custosos. Existe muito trabalho teórico que precisa ser feito para complementá-los, o que inclui tanto análise de resultados quanto a própria concepção de novos experimentos. Algo similar ocorre, por exemplo, na astronomia, que por vez ou outra também recebe semelhantes críticas injustas. Me espanta o senhor não ter inclusive criticado também esta área, ou mesmo criticado diretamente o estudo de matemática pura.

Como engenheiro eletricista especializado em computação, garanto ao senhor que os trabalhos realizados na área de física de partículas, e outras, estimulam sim o desenvolvimento da própria computação, como foi com a citada criação da WWW. Também podemos mencionar atualmente o projeto de computação distribuída sendo desenvolvido para atender ao LHC. Este e outros projetos por vezes bem menores podem e são freqüentemente aproveitados em outras áreas. E como disse o professor Shellar, esta sinergia não ocorre apenas com a computação.

Este desconhecimento da profundidade e extensão dos estudos tanto em física de partículas quanto em outras áreas deve ser fortemente combatido. Vimos recentemente uma lamentável campanha de difamação do programa espacial brasileiro, por exemplo. Me pergunto até que ponto todas estas críticas pseudo-científicas são apenas levemente influenciadas, se correlacionando com interesses políticos antagônicos, ou se são decorrências diretas, causadas não só com altíssimo índice de correlação linear mas dependência funcional completa e determinística.

Questiono veementemente todo esse desejo em transformar as universidades em produtores de patentes e em consultores de indústrias. Isto não quer dizer que prego algo diametralmente oposto, apoio sim que hajam interações, acoplamentos, correlações e causações mútuas. Mas é errado ter na produção industrial, ou mesmo nesta chamada "produção intelectual" -- lamentável invenção do mundo moderno, transformando o conhecimento em commodity -- um fim prioritário da atividade científica. Descobertas científicas não são sacos de farinha.

O mundo das patentes é recheado de pesquisas fúteis. Numerosas são as patentes que não trazem nada de novo. Isto inclui famosamente a indústria farmacêutica. Esta, aliás, merece nossa atenção aqui primeiro porque é muito comum ver um cientista, quando questionado sobre sua atividade, acabar precisando recorrer à criação de remédios para se justificar a contento. Saúde e longevidade são uma espécie de remédio infalível para justificar qualquer coisa. Se contribui para medicina, então algo é visto como bom, se não contribui, dispensável. Isto é lamentável...

A multi-bilionária indústria farmacêutica raramente produz novos conhecimentos científicos relevantes. A interação da indústria com o meio acadêmico também freqüentemente provoca desastres, como pesquisas fraudulentas e desperdício de recursos, sempre devido ao sentimento do "tudo pela patente". Mais do que isto, patentes são um instrumento extremamente mal-utilizado. Elas devem servir é para proteger o inventor, e permitir que este negocie com as indústrias, mas são utilizadas como instrumento para a apropriação de conhecimentos que poderiam perfeitamente, e deveriam ser tornados públicos. São vários os casos de tecnologias inovadoras que caem vítimas de patentes que as engessam, numa ominosa forma de especulação intelectual.

O verdadeiro espírito científico inclui o desejo em divulgar descobertas da forma mais ampla e rápida o possível. Era o espírito de Santos Dumont, que compartilhava suas descobertas, oposto ao dos controversos estadunidenses Wright que faziam pesquisas secretamente com intuito de "vender" (como se fosse algum tipo de mercadoria produzida como ouro, aço ou soja) conhecimentos aos militares para que estes os convertessem em instrumentos do imperialismo e opressão. Esta é a epítome da contraposição entre o que geralmente ocorre na ciência nossa, e na dos EUA, que ainda hoje se preocupa excessivamente em ajudar às forças armadas daquele país, e a "se dar bem" em geral. Isto se vê até mesmo na usualmente "liberal" Berkeley, que recentemente tem me surpreendido muito ao começar a colecionar decepções minhas -- não que isto tenha relevância ao universo. A correlação deste com minhas opiniões não é "estatisticamente significativa".

Termino citando um famoso parágrafo de Henri Poincaré de que gosto muito, do livro O Valor da Ciência:



La recherche de la vérité doit être le but de notre activité; c'est la seule fin qui soit digne d'elle. Sans doute nous devons d'abord nous efforcer de soulager les souffrances humaines, mais pourquoi? Ne pas souffrir, c'est un idéal négatif et qui serait plus sûrement atteint par l'anéantissement du monde. Si nous voulons de plus en plus affranchir l'homme des soucis matériels, c'est pour qu'il puisse employer sa liberté reconquise à l'étude et à la contemplation de la vérité.

A busca da verdade deve ser o objetivo de nossa atividade; é o único fim digno dela. Não há dúvida de que devemos nos esforçar por aliviar os sofrimentos humanos, mas por quê? Não sofrer é um ideal negativo que seria atingido mais seguramente com o aniquilamento do mundo. Se cada vez mais queremos libertar o homem das preocupações materiais, é para que ele possa empregar no estudo e na contemplação da verdade sua liberdade reconquistada.



Me perdoe se soei agressivo em algum ponto. Careci de tempo para apurar a qualidade desta carta. Pretendo apenas estimular um debate construtivo a respeito destas questões que muito me concernem... O que mais me preocupa é que nesta crise que se está detectando no ensino de disciplinas técnicas no Brasil, tenhamos que passar por esta dificuldade em justificá-las, quando ainda por cima já é tão difícil justificar por exemplo um bom número de disciplinas das ciências humanas, como a história, filosofia e literatura que tanto estimo.

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