2008/03/17


Harpão sem ponta

Este post faz parte da iniciativa de Blogagem Inédita do InterNey.net. Como eu considero que a maioria senão todos meus posts usuais já são suficientemente “inéditos” mesmo que não necessariamente interessantes, o que eu fiz foi guardar pra publicar hoje uma pequena peça de ficção que escrevi... Espero que gostem!

((Este texto é melhor visualizado na formatação original, aqui...))


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-- HARPÃO SEM PONTA --
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um conto de fantasismo realístico,
por Nicolau Werneck <nwerneck@usp.br> (06/03/2008)


F entrou em um bar/restaurante pouco depois das 15:20. Incerto sobre a adequação ou não de sentar-se a uma das mesas, que são utilizadas com freqüência mesmo é no horário do almoço, F senta-se no bar, no segundo banquinho antes do fim, próximo às mesas. Talvez até fosse ainda, segundo os critérios dos freqüentadores do recinto, o horário do almoço. Talvez até isso não fizesse a mínima diferença. Mas F estava incerto, e observar as atitudes de outros clientes e dos funcionários não o ajudou a esclarecer absolutamente nada. Todos pareciam muito certos entre si de que tudo estava normal e na mais perfeita ordem, mas F não sabia dizer qual ordem seria esta.

E no final das contas nem mesmo importava nada disso porque F não queria almoçar direito não, queria comer uma porcaria qualquer e voltar pro trabalho. O único motivo porque não estava lá naquele exato momento é que seu escritório havia sido tomado por uma força-tarefa de funcionárias do setor de limpeza, que foram agendadas para encerar o local ali naquele momento.

E não fazia mal também, porque F podia perfeitamente dar uma pausa ali naquele momento, e podia também levar seu computador portátil para continuar trabalhando no cafezinho perto do escritório. Enfim, estava ele ali, e iria consumir apenas um salgado qualquer, alguma bebida qualquer — de preferência algo saudável — talvez depois um café, e pronto.

Pediu uma coxinha e um suco/refresco sabor amarelo. A coxinha era comum, sem Catupiry. F ia com freqüência naquele lugar, e jamais conseguiu adivinhar quando que tinha ou não tinha a coxinha com Catupiry, para dar preferência a estes horários, ou mesmo pra não precisar sempre perguntar às balconistas, ou ficar se perguntando se haveria ou não... Mas não tem problema também, porque as duas são boas, e a sem Catupiry talvez até fosse mais saudável do que a outra. Mas era sempre uma pena, porque ali eles usam Catupiry de verdade, não é requeijão não, apesar de poucas pessoas se importarem com a diferença. Aliás, uma vez F até ficou desconfiado que os próprios donos do estabelecimento ali não tinham sequer a menor idéia de que havia esta diferença.

Tendo comido, F resolveu então pedir mais um café. O café de lá não tinha nada de mais, a xícara não era das preferidas de F, mas o produto em si era razoavelmente gostoso. O café veio rápido, ao contrário de uma outra ocasião em que ainda era mais a hora do almoço, e tinha uns dois grupos de pessoas pedindo café ao mesmo tempo e o dela acabou demorando no meio da confusão.

Pretendendo comer junto do café um docinho que estava em sua bolsa, F decidiu pedir um copo de água mineral, seguindo o costume que começou a adquirir depois de começar a frequentar alguns cafezinhos mais chics por aí, onde sempre se serve um copinho de água junto da infusão ritual.

Na rua, F viu antes passar um guarda desses que andam de bicicleta, usando shortinhos de lycra e óculos arrojados parecidos com olhos de alienígenas dos piores filmes baseados em livros do Stephen King.

“Ei, por favor, você pode servir pra mim um copo aí dessa água mineral?”, perguntou F.

“Hein?”, respondeu inquisitivamente a atendente atrás do bar.

“Me vê um copo de água mineral, por favor.”

“Aaah tá!... Não.”

“Ah...” finalizou atônito o consumidor fracassado. F já havia tomado daquela água antes, pedira pra mesma atendente semana passada, se não depois. Pagou oitenta centavos, ele estava certo disso!... O copo era daqueles de aproximadamente quinze centímetros de altura, com a boca ligeiramente estreitada, um pouco como nas bainhas da calça de uma antiga zoot suit estadunidense. Era o mesmo copo normal de se utilizar ali para sucos à tarde, sendo que pela manhã o normal era um outro copo, daqueles que tem um alargamento abrupto a um terço da boca.

F procurou pelo cardápio, meio conformado e meio desconsolado. No verso da impressão plastificada e rígida lia-se com clareza: “água mineral (copo) ... R$0,80”. Mas que sandice seria esta?

F inquiriu novamente a atendente, que ao atendê-lo dava a impressão de que era a primeira vez, de que eles não haviam acabado de passar por exatamente o mesmo processo poucos instantes atrás.

“Ei... Me vê um copo de água mineral, por favor?“

“Água?”

“É, daquela garrafa ali, ó, vocês não vendem? Me dá um copo dessa água aí dessa garrafa.”

F indicava a garrafa de forma polida e comedida inicialmente, mas depois de um tempo apontou de uma forma mais ilustrativa, clara, inambígua e direta. Um apontar de dedos quase prolixo. A garrafa de plástico transparente carregava originalmente um conteúdo com um volume nominal de mil e setecentos mililitros. O formato da garrafa algo entre o cilindro de alguns ínvólucros semelhantes de bebidas gaseificadas, e o encurvamento tradicional de garrafas feitas com materiais convencionais, como vidro ou cerâmica. A tampa da garrafa trazia inscrições na cor vermelha, indicando que tratava-se de água com gás. O rótulo também tinha coisas em vermelho, e trazia uma logomarca elíptica com ainda as cores azul, branco e cinza/prateado. Vinha escrito claramente a natureza de seu conteúdo: “Água Mineurval”.

A garrafa encontrava-se já parcialmente consumida, com o nível da água dentro dela chegando a quase exatamente a metade da altura da embalagem, o que significava obviamente que ainda não deveria ter sido consumido mais da metade do volume total da garrafa, por causa do formato quase cônico dela. Ainda mais considerando-se que a embalagem vem da fábrica com um pouco de ar dentro, uma quantidade que varia um pouco aleatoriamente mas pode chegar a tomar toda a região a uns 2 centímetros da boca da garrafa. F estava convicto de que aquela garrafa havia sido consumida por outros clientes, servidos por outros antendentes, senão por aquela mesma, e estava certo de que a quantidade de água presente na garrafa era perfeitamente o bastante para atender às imposições de seu pedido.

E isso tudo nem fazia a menor diferença, a quantidade de água na garrafa. Nem mesmo importava na verdade aquela garrafa estar ali atrás do balcão! E ainda mais do que isso: a garrafa estava ali, e estava parcialmente consumida, provando seu uso anterior. Aliás, consumida em seguramente menos que a metade do seu volume nominal de conteúdo, o que se pode provar pela altura no nível estar logo acima da metade da altura da garrafa, que é aproximadamente cônica. Mas isso aí nem vem ao caso.

A tampa da garrafa ainda mostrava claramente que esta havia sido aberta, pois era possível ver as curtas rebarbinhas esbranquiçadas que às vezes ficam saindo pra fora da beiradinha dela, e do lacre que vem grudado. As rebarbas da tampa desencontradas das rebarbas do lacre, demonstrando uma rotação relativa entre os dois objetos a partir de suas posições originais antes da abertura. E a garrafa ainda estava ligeiramente amassada, daquele jeito que desamassa no momento que você segura pra servir (algo como um multivibrador biestável). F imaginou até que alguém poderia estar naquele momento bebendo um copo servido daquela garrafa, e quase tentou observar se não haviam manchas de condensação sobre a garrafa, com marcas de dedos no meio, que às vezes se formam quando servimos e que esvanecem em decaimento exponencial depois que colocamos a garrafa de volta sobre a mesa.

“Ih, essa água aí eu não sei direito não... Não sei.”

“Aqui no cardápio, ó. É essa água aí! Outro dia mesmo eu até tomei.”

Nisso o café já tava até ficando frio, né. Mas isso não importa muito não, não faço questão de café muito quente, às vezes até tomo frio mesmo, o que importa é mais o gosto, o açúcar e a cafeína.

E a atendente: “Mas ela tá tampada, a garrafa.”

“Não ó. Já abriram ela.”

“Hein??”

“Olha ali, já abriram essa garrafa, ela já tá até meio vazia.” Ou meio cheia, não importa.

“Ah, sim, mas é que ela está tampada, tem que destampar, precisa abrir ela para servir.”

“Então...”

“Eu não sei abrir a tampa não... Tem que falar com a Neurva, que ela sabe. Espera ela atender ali, e ela já vê.”

“Beleza, falou.”

“Hein?”

“Tá bom, obrigado...”

Já com o seu café pela metade, e o doce em um terço ou talvez dois quintos, F esperava calmamente pela outra atendente que deveria resolver tudo quando chegasse. Não que ele se importasse muito. Mas não era possível que fosse tão difícil servir essa água. F estava determinado a ser servido, até para tentar evitar essas complicações no futuro. De repente era só pedir pra essa outra, e ela sempre serviria sem problemas, a tal Neurva. Mas F tem uma má memória pra nomes, tinha que ver depois se ia lembrar.

Chegou a outra garçonete.

“Ei, tudo bem?... Pega pra mim um copo dessa água mineral aí?...”

“Mas eu não consigo abrir essa tampa não!”

“Ah, tá, é que ela ali disse... Mas será que não tem jeito? Você não pode pegar ela pra mim, e eu mesmo abro?...”

A face da atendente espressava de repente muita preocupação e empatia, olhando pros lados e para F e para o balcão e para a garrafa.

“Ih, não sei não... Tem que ver... É que é difícil... E se como que fica??”

F agora apenas fitava a cena, quase que como se estivesse assistindo a uma peça de teatro sendo ensaiada ou encenada, talvez improvisada à sua volta. A garçonete prosseguiu...

“Tinha que ver com ele ali, mas acho que eles não costumam deixar. A gente nunca faz assim, sabe.”

F ensaiou um diálogo na sua mente: “Mas então. Se vocês nunca fazem assim, deixando o cliente se servir, é porque a maneira como vocês sempre fazem é vocês servirem. Como diabos pode ser agora que não tenha quem possa abrir essa MALDITA” ele retirou a palavra forte do diálogo ensaiado em sua mente. “...abrir essa garrafa?” Ele não aproveitou sequer uma palavra do diálogo ensaiado na cabeça. Mas não faz mal, não tem importância.

“Tá, então. Valeu.”

Pela cara da atendente, F percebeu que ela não havia entendido o agradecimento, mas não se importou. Não importa, porque não importava.

F ficou lá, desapontado. Mas como seria possível? A água ali do lado, era só abrir a garrafa, servir e pronto. Ele pagava até mais, pagava um real. Pagariam talvez o preço de uma latinha de refrigerante, que estavam evitando beber porque não é muito saudável. Mas não tinha nem como... E a água ali parada, não servia nem pros mosquitos da dengue se reproduzirem, já que o invólucro estava fechado.

Parou por um momento, pensou, olhou para os lados. Uma das atendentes ia de um lado para o outro resolvendo coisas distantes. A outra fazia algo parada meio de lado, olhando para a direção onde estava F, mas não exatamente para ele.

Então F pegou a garrafa, um copo, e abriu a garrafa com a maior naturalidade. Serviu sua porção, fechou a garrafa e a devolveu para seu lugar. Naturalmente, sem pressa nem cuidado.

Se alguém viu, não ligou. Um tempo depois, F pediu a conta. A conta veio errada. Veio a conta de uma outra pessoa, e não só isso: além de ser a conta dessa outra pessoa, ela estava mesmo errada. Tinha um produto que essa outra pessoa nao tinha pedido, mas até aí tudo bem, porque era por causa de um outro produto que nao estava cadastrado, e aí colocaram outro do mesmo preço no lugar. Esse tava certo, na verdade. Só que aí tinha duas vezes uma outra coisa que esse outro cliente pediu uma vez, e não veio, aí ele pediu de novo, e só trouxeram da segunda vez, mas cadastraram nas duas vezes que ele pediu.

Mas isso tudo não importa, o que importa é a coincidência que se deu, que é o fato peculiar dessa história/conto, a única razão porque ela merece ser contada e ouvida, e porque isso tudo não é apenas um relato banal do dia de uma pessoa mas sim um caso interessante, digno de nota e atenção. Acontece que o valor que estava naquela conta era exatamente o que F deveria pagar pelo seu lanche completo, inclusive a água que ele pegou, que sairia pelos oitenta centavos de direito. Se pagasse aquela conta, F pagaria pelo seu lanche com precisão, e ainda não precisaria explicar nada pra ninguém, sobre ter ou não pegado a garrafa ele mesmo.

F pagou. Enquanto nosso protagonista caminhava do caixa de volta até o lugar onde estava sentado, ouviu atrás o tal outro cliente pagando sua conta. O outro cliente explicou o que havia pedido, e pagou corretamente também a sua conta. Tornou-se assim mais um herói nesta história, um semideus com direito a ser imortalizado em desenhos de ânforas/vasos da era clássica.

F sentou-se novamente em seu banco, no bar. A xícara vazia ainda estava ali, com um resto de açúcar no fundo, calorias não-consumidas. Seu livro aberto, virado com a capa pra cima, estava ao lado. F se sentou e voltou a ler o livro. Mas deteu-se por um momento, e observou novamente a garrafa por cima do livro. Observou o anel ondulante desenhado na interface tríplice entre o líquido, o ar e o plástico. Observou a concavidade sutil da água sobre a mesa no ponto em que ela encosta na base da garrafa, causada pelas caracteríticas de viscosidade e tensão superficial do líquido. Aquela agüinha entre a garrafa e a mesa que às vezes deixa uma marca parecida com uma flor quando a garrafa é levantada.

Ele olhou pra garrafa, olhou pro livro, pro balcão, pras atendentes, pros lados... “O que vai acontecer se eu simplesmente pegar essa garrafa e levar embora?”, F pensou. Considerou, mas desistiu. Aí então levantou-se e pegou a garrafa. Pegou e colocou dentro de sua mochila com naturalidade, sem pressa nem perfeição. Fechou o acessório, que levou às costas, e saiu do bar/restaurante. Ganhou a calçada/rua. Uma calçada mal-feita, quebrada e esquecida, e dividida igualmente (ou não) entre pedestres e veículos.

Na esquina, F abriu a garrafa e começou a beber seu conteúdo pelo gargalo. Não sentia qualquer tipo de satisfação, nem pelo furto bem-sucedido, nem por finalmente beber sua almejada água, saciando algum desejo profundo que não possuía. Não tentava também se livrar da prova do possível crime. Ele simplesmente bebia a água porque é isso que se faz com a água: bebe-se-a.

Um transeunte/cidadão se aproximou, observou o rótulo, e perguntou: “É água com gás?”

F confirmou: “É...”

“Água sem gás é melhor.”, pronunciou o transeunte enquanto fazia uma cara meio de decepção meio de intrigado.

A asserção portava ao fundo um tênue tom de proposição e de pedido de confirmação. F respondeu em altura e volume baixos.

“Né não, sô...”

“Hein?”


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1 comment:

Anonymous said...

ei, gostei da história q vc contou :o) conte mais histórias!
laurinha