2008/08/29


Círculo virtuoso

http://oglobo.globo.com/sp/mat/2008/08/29/temperatura_despenca_13_graus_na_capital_em_duas_horas-548004899.asp

A chegada da frente fria fez muita gente parar no centro de São Paulo para olhar para o céu. Por volta das 12h, um círculo colorido, chamado de halo solar, pôde ser visto ao redor do sol. A meteorologista Fabiana Weykamp, da Climatempo, explica que o fenômeno não é raro, mas precisa de condições bastante específicas para ocorrer.

(...)

Fabiana conta ainda que diversas pessoas ligaram ou mandaram e-mails para a Climatempo, buscando explicações para o fenômeno.

- Tinha muita gente com medo, querendo saber se era algum tipo de presságio de algo ruim. Mas não é nada disso. O halo solar é apenas um fenômeno óptico, como o arco-íris - afirma a meteorologista(...).


"Alô? É da Climatempo? Oi, é que pousou uma coruja preta na minha cabeça, segurando uma lagartixa morta na pata esquerda. Isso por acaso não é algum presságio? É mau-agouro?"

"Ah, não se preocupe, senhor. Estas são todas atitudes cientificamente explicáveis dos bichos da natureza. Este fenômeno não é raro, mas precisa de condições muito específicas para ocorrer."

"Ufa, que alívio! Tinha a nítida impressão de ser algo raro já que nunca havia visto ou ouvido falar de algo assim na minha vida. Agora estou bem mais tranqüilo, sabendo também que trata-se de um fenômeno mundano da natureza, que não desafia as mais fundamentais caracterśticas constitutivas do universo, e ainda é desprovido de significado e de possibilidade de interpretação. Vou seguir agora com minha vida usual, a mesmice maçante de sempre, da qual me retirei por um equívoco indesculpável, um lapso em que cri momentaneamente que neste mundo algo poderia ser digno de nota. Obrigado, tchau!"

"Eu compreendo. Certo. Você tomou suas pílulas hoje, 1138?"

***
ADENDUM:

Minha raiva ao ler essa reportagem vem de uma porção de motivozinhos. enumero a seguir alguns deles:

1_ O principal é o seguinte. Eles realmente querem que eu acredite que uma pessoa que tenha acreditado que o fenômeno pudesse ser alguma forma de "presságio", "mau-agouro" ou outras coisas supersticiosas teria o discernimento e sangue frio pra ligar pra CLIMATEMPO pra pedir esclarecimento?

Se uma pessoa ligou pra CLIMATEMPO pra perguntar alguma coisa, é porque ela definitivamente tem uma boa idéia de que a pergunta dela se relaciona a fenômenos meteorológicos. Que pessoa é essa que viu aquela coisa no céu, imaginou "ah, deve ser um fenômeno meteorológico", e aí ligou pra climatempo não perguntando que fenômeno seria, mas sim perguntando "ô moço, isso será que é boi-tatá???"

Quem acha que é "presságio" vai procurar ou um centro de macumba, ou alguma fonte de informação mais geral (tipo a própria redação de um jornal), não especificamente o Climatempo, né?!?!?! Sinto muito, não. Não houveram vários telefonemas para a Climatempo perguntando se aquilo era o primeiro selo do apocalipse.

2_ Que absurdo é esse de falar que "não é raro" e que "depende de condições específicas"?... Primeiro que é óbvio que é raro, se não fosse raro não seria notícia. É raro sim. ao menos em São Paulo.

Quanto às "condições específicas" bom, e de que forma algum fenômeno tipo esse poderia depender de "condições gerais"?... Se dependesse só do Sol tar no céu a gente via todo dia, né? Que palavreado mais pomposo e desnecessário.

O que a moça quis dizer é que observar esse fenômeno é como ter um filho com olho azul. Isso depende de um certo gene específico, ou seja, não é muito algo que pode ocorrer "ao acaso". Mas não é raro porque, uma vez que a tal "condição específica" seja atendida, ele ocorre, de maneira determinista. Vide população nórdica onde olho azul não é nada raro.

Existe nisso tudo uma grande confusão entre física e probabilidade, entre a "teoria" e a "prática". Esse tipo de confusão epistemológica me fascina, porque revela verdades sobre nossos sistemas cognitivos.

Resumindo: "específico" não é sinônimo de "raro"... De jeito nenhum. Pense nisso, pq tou cansado pra escrever mais. :P

3_ Me dá raiva essa idéia da ciência combatendo a superstição. As pessoas gostam de tratar a ciência como "o oposto da crendice popular e das religiões incivilizadas". O dever do cientista não é (e.g.) privar americanos nativos de sua cultura não, gente.

As pessoas tem a vida delas, elas vêem coisas, elas criam idéias, criam teorias da conspiração, criam interpretações... Isso é assim mesmo. Tem que ser assim. Assim que é viver.

Eu admiro muito mais um caipirão no meio do mato que olha prum halo solar e se caga de medo, e supõe ser alguma forma de bruxaria daquela velha suspeita que mora no alto do morro, do que um citadino janota que vê com dificuldade o mesmo fenômeno através do céu esfumaçado da metrópole, e não tem nenhuma reação. Pisca o olho e diz "isto é apenas um fenômeno da natureza."

Saber que algo que você está vendo "é um fenômeno da natureza" não diz absolutamente nada. Tudo são fenômenos da natureza, oras. Porque é que essas pessoas encontram conforto nesse tipo de afirmação??? A pergunta é meramente retórica, pois respondo: é porque elas simplesmente trocaram a velha religião pela ciência. A postura imatura, passiva e alienada permanece.

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