É um alívio ter nascido no Brasil em 1981, já em tempos de abertura, anistia, diretas-já e Tancredo Neves. Tenho a sorte de poder ver a ditadura e ler sobre suas atrocidades com a respeitosa distância de um estudante de história, assim como vejo o fascismo da Europa da metade do século XX... Pra mim nazista são os mocinhos maus do Indiana Jones, e estudante clandestino é o Cássio Gabus Mendes no Anos Rebeldes. Talvez por essa distância, tenha conseguido vencer os traumas justificáveis carregados por quem vivenciou essas coisas, e consiga ver o mundo com um pouco mais de maturidade, sem morrer de medo de acidentalmente tecer elogios a algo que possa ser associado ao fascismo, ditadura, "direitismo" e outros males. E olha, são poucos os brasileiros que conheço que considero serem capazes de sair dessa de fazer uma classificação binária e simplória de o que é direita e esquerda, e se permitem falar das coisas com a verdadeira complexidade que elas possuem. Um deles é o Arnaldo Jabor.
Um caso desses, de uma coisa complexa que é mal-interpretada por brasileiros traumatizados e preconceituosos, que falham em apreciar as coisas com o detalhamento que elas merecem, é o filme Tropa de Elite. Não é um filme maravilhoso, nenhum grande clássico da história da arte, mas deve ser o filme mais injustiçado de que ouvi falar ultimamente. Um filme bem-feito, com um roteiro extremamente sóbrio e complexo, passível de observações intelectuais, foi jogado no lixo pela intelectualidade brasileira que o deveria ter apreciado melhor. Foi acusado de ser um filme "fascista", de fazer apologia à violência policial, e de "dar à classe média o que eles tavam querendo", que seria algo como um filme do rambo em que os russos são o CV.
Só quem eu sei que fugiu de enquadrar o filme em pontos cardinais (esquerda direita, pra cima pra baixo) foi mesmo o Jabor... Ele fez duas crônicas (uma duas), e cito um trecho de uma que diz bem o que estou em vão tentando dizer com outras palavras:
Tinha lido nos jornais a eterna polêmica de nossos intelectuais dualistas: progressista ou fascista? Esquerda ou direita? Essa gente só consegue raciocinar com um cuco na cabeça, batendo o pêndulo como um colhão pendurado, tentando enquadrar a realidade num conteúdo ideológico qualquer.
Poisé. Quanta babaquice viu... Olha, não sei de nada mais ingênuo que uma pessoa possa fazer ao criticar um filme (ou obra narrativa qualquer) do que sair falando que "o filme insinua que TODOS xx são yyy"!... Taí algo que se fez muito ao criticarem o Tropa. Cito alguns blogs de amigos de amigos meus. Um diz que o filme é muito "caricato", e que representa muito superficialmente os personagens, e que insinuaria que todas ONGS são criminosas e todos universitários maconheiros safados. Outro já apela mais pra questão do suposto "fascismo" pregado pelo filme, alegando que o filme seria algo como uma apologia contemporânea à nossa ditadura torturadora de outrora... E fala que o filme insinuaria que os policiais do BOPE são incorruptíveis.
Isso de falar que "o filme chamou todas ONGs de corruptas e todos policiais do BOPE de incorruptíveis" é extremamente infantil. Ora, o filme conta a história de um sub-grupo de personagens de um batalhão, num certo período de tempo, em que houve um envolvimento com uma certa ONG. Porque sair extrapolnado dizendo que o filme afirmou coisas sobre todos policiais e todas ONGs?? Como teria que ser o filme pra ser "justo"? Tinha que ter duas ONGs, uma bonita e uma feia, e tinha que ter dois policiais, um mocinho e um bandido, e tinha que ter também dois tipos de bandido, os malvados e os corrompidos pela sociedade... E além disso cada um desses tinha que ter pretos, brancos, índios e mulatos, loiros, morenos e carecas, homens e mulheres, senão também o filme taria falando que, por exmeplo todos policiais morenos e canhos do BOPE são incorruptíveis... (do BOPE, porque da polícia convencional mostrou bastante os corruptos.)
Não tem tempo de ficar sendo capitão planeta não, ficar representando um de cada. Cresçam. o cara contou uma história ali, de um capitão, mais dois policiais, mais um punhado de universitários, num certo morro, com uma certa ONG. São vocês que insinuam essas tais generalizações.
Aliás, por acaso o filme insinua também que todos capitães do BOPE tem crises nervosas? Insinua que todos ele brigam com a esposa grávida? Ora, tenho certeza de que ao menos o Azevedo, que tem DOOOIS filhos, não deve ter se separado da esposa quando esta teve o primeiro.
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O filme possui uma formidável diversidade de personagens. Tem universitário MUITO safado (traficante), tem universitário só mais ou menos safado, tem os que realmente querem só ser legais (a moreninha que paquera lá com o policial)... Tem até mesmo um interessantíssimo personagem, que é o policial universitário.
Do lado da polícia, tem policial bandidão, tem o que se importa pouco, tem o que "se vende" pra trabalhar, em diferentes níveis. Tem várias histórias complicadas, não é nada simplório não. O filme é cheio de "áreas cinzas", essas dualidades maniqueístas infantis tão só na cabeça de quem viu cheio de preconceito.
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Quanto à violência, fala-se muito que o filme seri aum grande espetáculo de sangue e horror, que seria um passatempo sádico para a classe média fascista que queria ver derramamento de sangue de pobre. Taé o Jabor falou isso. Isso não podia se rmais afastado da realidade.
Eu até concordaria se alguém me dissesse, por exemplo, que a violência foi banalizada no filme. Nem vi ninguém dizer isso!!... Mas se você reparar bem, assistir de novo sem ficar nervoso, com medo de talvez apoiar uma obra que seria algo como um Mein Kampf contemporâneo, vai ver que a violência passa às vezes só no fundo... Por exemplo, na memorável cena do "põe na conta do papa", não aparece o cidadão sendo executado. Em mais de um momento pegamos a cena de tortura já no final, e às vezes ela é só mencionada. Isso é MUITO diferente do que acontece no 24 horas, por exemplo, em que acompanhamos todo o processo do Jack Bauer decidindo fazer uma tortura, e fazer. Naquele seriado, o lance da tortura é intensamente explorado pelo diretor pra criar suspense, stress e todas emoções do filme. No Tropa de Elite isso não acontece.
Tem uma cena por exemplo em que o BOPE chega num pátio na favela, aparecem de surpresa levantando das sarjetas, e atiram antes de perguntar nos sentinelas do tráfico. Acho até que rola um que toma um tiro meio atrasado, uma cena muito marcante. Mas não marca pelo "stress" da tortura. Não é uma violência explorada com close-ups, câmeras lentas, ou com diálogos estilo homem-aranha.
Acho que o pessoal sentiu falta disso. O filme não tem diálogos assim, entre um policial e um traficante em que um fica questionando sobre o outro ser vagabundo, ou homossexual, ou de direita, ou sei lá o que mais que se gosta de falar em filme brasileiro, até que enfim o traficante puxa um revolver e fala algo como "Quer saber? Eu tou pouco me fudendo. Isso aí é o caraaalho, vai tomar no meio do seu cuuuu! Ahahaha!!" aí então o mocinho dá um tiro de sorte e pega na barriga do trafi, sendo atingido apenas de raspão no braço. Só porque não tem isso, esses diálogos existencialistas antes das mortes, o pessoal achou que é um filme "cruel", sei lá.
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A cena lá do pátio, aliás, é importante porque tem o fogueteiro. Ninguém falou do fogueteiro, mas o fogueteiro é o personagem mais importante do filme. Será que de todos intelectuais por aí, tem que vir eu, engenheiro, pra notar uma certa semelhança nesse negócio todo de procurar o corpo do fogueteiro, com a preocupação de tragédias gregas com o corpo de pessoas mortas? Exemplo óbvio: Antígona.
O filme tem dessas coisas, mas ninguém deu a menor bola. Tem lá o Capitão tendo uma crise nervosa. As pessoas saíram falando do capitão Nascimento como um Chuck Norris brasileiro, como um Rambo (não no primeiro filme, óbvio), um Nico-acima-da-lei, mas ele não é isso!... Ele até pode ser sim um militar fodão e malvado quando é preciso, mas ele é não é um personagem sobre-humano, plano, propagandista. Ele é humano, tem problemas pessoais muito piores do que o homem-aranha (olha ele aí de novo), toma à vezes atitudes guiadas pela emoção, às vezes pela razão. Erra e acerta. E sofre com tudo isso boa parte do tempo, mas sempre encontra conforto em saber que é um bom profissional.
Esse negócio de sair falando do Capitão Nascimento como um Chuck Norris tupiniquim rolou só porque é engraçado. O filme não se resume a isso, de forma alguma. Tem lá cenas memoráveis de "ação militar"... Em especial, tem o trecho todo do treinamento do BOPE, que é algo quase que separado do resto do filme. Eu vi aquilo como uma interessante versão nacional da parte do treinamento do Apocalipse Now. Nem nacional, carioca. É muito legal ver, pra variar, oficiais brasileiros ao invés de gringos, falando com sotaque carioca coisas como "os senhores não são bem-vindos aqui". Mais do que isso, em todo o filme tivemos oportunidade de pensar um pouco sobre essa figura tão estranha e pouco conhecida: o policial e o militar brasileiros.
Sim, porque ser militar no Brasil é visto por alguns quase que como uma contradição. Afinal, toda a nata intelectual desse país se esforça para rechaçar impiedosamente qualquer filme em que estes cidadãos sejam retratados senão como bestas feras assassinas sem-mãe, seguidores de Mussolini ou defensores de interesses imperialistas estadunidenses. O Tropa de elite foi um parte um alívio de toda essa babaquice. Ou tentou ser, porque a reação foi apenas a esperada.
A proósitco, fiquei feliz com o que vi. Fiquei com uma impressão que nossa polícia, comparada com as anglo-saxônicas, adapta bem nosso jeitinho peculiar de ser.
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Eu sinto é que toda essa reação negativa ao filme se deve aos fumantes de maconha formadores de opio-nião terem ficado tristes porque não foram os mocinhos do filme. Em geral o cinema, principalmente o brasileiro, trata fumantes de maconha como grandes heróis, únicos cidadãos a se preocuparem com a liberdade, a possuírem criatividade e a cultivarem outros valores relacionados. Nesse filme apareceram como nada demais, apenas pessoas que indiretamente contribuem para o problema da violência. Aí ficam putinhos em suas escolas de ciências humanas, citando sei lá que microrrelações de poder do Foucault pra tentar provar por a+b que o filme se tratava de um manifesto em prol da opressão do povo...
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Quanto à questão da exploração barata da violência, a uma suposta "favela-exploitation", atendendo lá aos anseios dos jovens jogadores de Counter Strike, ao meu ver filmes como Carandiru e Cidade de Deus o fizeram muito mais, e foram no entanto super elogiados. Não rolou peitinho balançando do rodrigo santoro... Não tem aquela coisa toda do "mundo cão" tradicional do cinema nacional.
Tem, por outro lado, cenas da polícia subindo o morro ao som da música lá do Tihuana. Alguns chegaram a clamar que o filme era um "filme de ação barsileiro". Não achei não. São cenas de ação, mas são mais pra dar clima pro filme, não são o centro das atenções, não é o motivo de ser do filme. O motivo de ser é fogueteiro, são as narrações do Capitão falando da merda que é o trabalho dele, e é o policial-universitário tentando achar o lugar dele no mundo.
Infelizmente, os caras se vestem de preto. Dizem até que vai mudar agora, vão passar prum tal camuflado digitalizado. O filme criou essa imagem do "policial de Elite" brasileiro, que até então não existia. A gente só tinha idéia do que poderia ser uma SWAT estadunidense, por exemplo. E isso é legal, pelo mesmo motivo que é legal brincar de guerrinha quando a gente é criança. Aí virou moda, caiu na boca do povo, e os intelectuais prepotentes únicos-bastiões da democracia saíram falando que era nazismo, que aquele preto ali era o uniforme da SS, ou dos guardinhas do Mussolini... Talvez se eles se vestissem de cor-de-rosa, o filme se tornaria uma doideira cabeçuda, e aí sim seria apreciado pela nossa intelligenza, o "stablishment moral" comunista das universidades.
O problema todo é o preconceito contra o preto.
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Em suma, infelizmente foi mais um daqueles textos extensos em que eu falo um monte de bobagem complicada tentado defender algo sofrendo acusações fáceis... Sou uma eterna vítima da retórica suja, pobre eu.
Assistam a droga do filme lá!!... Não é "nazista" não. Só não é mais um daqueles filmes brasileiros de favela-exploitation em que o mocinho é um maconheiro ladrão que namora uma puta. É um filme tanto ou mais complicado quanto a própria questão da polícia/favela/classe-média é. Qualquer simplificação está na cabeça dos críticos que não quiseram ver tudo, quiseram se posar de bacana-apático pros amiguinhos renegando o sucesso do filme, como sempre acontece aqui. "Ai ai, cansei desse Tropa de Elite"...
1 comment:
Hã... não acho que deveria ter uma ONG boa e uma ONG má... mas muito me espantou ver que aquela retratada no filme é mostrada só como um antro de estudantes universitários levianos e maconheiros.
Sei lá, acho que pra um ONG ter um inserção qualquer dentro de um lugar ela tem que ter um mínimo de coerência e sinergia com a população local e não vi muito isso no filme.
Não acho que isso seja uma postura do filme como um todo, ou que manche as ONGs, mas ver uma ONG que parece se resumir a um cheiródromo e um ponto de pegação de universitárias é caricato. Sei lá se essa ONG existe, mas se existir acho que deve ser cheia de voluntários : )
Da mesma maneira os estudantes universitários parecem ser todos uns imbecis... que dão muita trela no morro e fazem protesto pela paz quando o uma mina qualquer lá morre na mão dos traficantes.
O uso de entorpecentes aparece meio engraçado também, os caras tem uma atitude de "maconheiro empolgado", lesadão e ainda por cima tem um mega discursão clichê. Novamente, pra mim pelo menos, isso é caricato.
Curto várias coisas desse filme, especialmente a "moral da história" que pouca gente parece ter pegado, mas não acho que ele prima em tratar algumas temáticas de maneira coerente - às vezes tive a impressão que, dentro dessas duas temáticas, tudo ficou muito preto-no-branco.
Sei lá, não acho que o filme tem nada de fascista. Infelizmente não posso dizer o mesmo de grande parte da leitura que foi feita dele - gente aplaudindo cena de tortura no cinema e tudo mais...
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