2007/11/08


Postagem da inquietação futurista

Cansei de ouvir gente falando bem de blogs e wikis e interação e participação, mas evitando dar o mergulho final na piscina do século XXI.

Faz tempo que já critico professores que dão aulás fáceis, mas na hora da prova, na hora do "vamo vê" fazem questões dificílimas, avaliações criteriooooosas. Na hora do trabalho dele, de ensinar, é tudo muito fácil e descontraído, na hora do nosso trabalho, aí então não, a matéria é "séria", é "super difícil"...

Algo semelhante acontece com gente com quem gosta de falar bem das "novas tecnologias", no futuro da pedagogia e do ensino, mas nos momentos cruciais renegam todas as atividade "interativas", "horizontais" e "de mão dupla".

Acabei de ver uma palestra em que o palestrante começou falando justamente de como no século XXI o ensino vai se dar de forma coletiva, com a participação dos alunos, que ninguém mais vai ser "dono da verdade", e que tudo tem que ser interativo, flexível, participativo, inclusivo, democrático.

Aí o palestrante falou isso, e logo em seguida falou assim, que "eu vejo que tem muita gente por aí que tá fazendo referência à Wikipedia, isso não pode não, na Wikipedia qualquer um escreve, pode ser eu, pode ser você, mas pode ser também um faxineiro..."

(O palestrante falou "Wikipídia", com 'í', ele precisaria entrar na Wikipédia pra ver a pronúncia correta.)

Poisé, essa é só mais uma pequena gota d'água que veio a se juntar a tantas outras pequenas critiquinhas maldosas à Wikipédia, que me fez estourar. Acho todas essas críticas muito erradas e injustas.

Eu ia questionar publicamente o palestrante, mas não rolou. Acabou que fui conversar num tête-à-tête, o que é sempre diferente, né... A pessoa em questão apenas reforçou o que disse, falou que acha a Wikipédia mesmo maravilhosa, mas que não pode citar não, porque pode ser que algum faxineiro tenha editado o artigo que você está se referenciando, portanto não é uma "referência científica", então "pra ciência não pode usar Wikipédia".

Acontece, prezados, que considero que fazer uma referência NÃO É UM ATO CIENTÍFICO.

A ciência é algo muito mais raro do que a gente pensa. Isso que a gente faz aqui no mundo acadêmico todo dia, ler artigo, revisar artigo de seus peers, ir em congresso, dar aulinha, isso não é ciência. Ciência é aquele momento em que você tira uma conclusão lógica a partir de dados (ou melhor, informações) que você colheu de um experimento ou pesquisa. Esse é o momento dourado da ciência. O resto é retórica, é convivência humana, é política, para o bem ou para o mal.

Já o lema da Royal Society de Londres prega: Nullius in Verba: "nas palavras de ninguém", ou "segundo ninguém". Segundo a Wikipédia, este lema veio justamente para firmar a crença dos revolucionários fundadores desta sociedade em que citar grandes textos tradicionais, como os escritos de Aristóteles, não é o cerne do fazer científico.

Não existe portanto algo como uma "referência científica". Não existe motivo pra sair dizendo que citar a Wikipédia é ou não é científico. Ciência quem faz é cada um, pegando o que leu num artigo, ou na Wikipédia, e tentando reproduzir em casa (ou no lab). Questionar a cientificidade de um artigo porque ele citou ou não citou a Wikipédia é algo de superficial e fútil. O interesse dum artigo científico está na matéria de fato apresentada por ele, e não em suas referências, não em Aristóteles. Morte a Aristóteles!...

E o pior de tudo é falar mal do coitado do faxineiro... Olha, pela minha experiência, quem mais vandaliza a Wikipédia são adolescentes da classe média, e quem mais insere textos inúteis e tendeciosos são justamente figuras vaidosas e menos ilustes do próprio meio acadêmico.

Não dá. Falar mal da Wikipédia eu não admito. É pior do que falar mal do governo. É um absurdo falar mal do governo, porque você mesmo é uma pessoa que poderia se candidatar, e ainda é uma pessoa que vota, e cumpre lá suas obrigações, então você faz parte dele, e não teria muito direito de falar mal. Mas é compreensível. Já na Wikipédia não é compreensível, porque trata-se da efetiva "democracia participativa direta". Você não apenas vota em quem vai escrever na Wikipédia, ou diz parcialmente por exemplo se aceita ou rejeita algo escrito. Você pode, se quiser, efetivamente entrar lá e fazer o trabalho que quiser! Não dá pra criticar não, de jeito nenhum!...

Quanto à credibilidade: Quem tem que ser críveis são os fatos, e não os autores. Você tem que ter critério pra ler qualquer coisa que seja, seja a Wikipédia, seja a Encyclopædia Britannica, e (olha que importante) sejam os JORNAIS e outros meios de comunicação de massa, seja uma fofoca da sua vizinha, ou algo que um professor fala, ou panfletos assinados ou apócrifos... Tudo bem que se uma certa fonte te dá muitos dados críveis, você acaba decidindo que aquela fonte é em si digna de confiança, e começa a relaxar, mas o ceticismo pode sempre vir à tona. Essa confiança numa certa fonte deve sempre ser entendida como algo a posteriori, e revogável de forma instantânea. Confiar numa fonte, e achar bonito ver ela numa bibliografia, nada mais é do que fruto de nossa preguiça em sempre viver num estado de descrença absoluta e universal, e da estranha repulsa anglo-saxônica à idéia do solipsismo.

Não existe justificativa aceitável pra rejeitar a Wikipédia em referências de artigos científicos, senão a própria idéia de que o ensino precisa se dar de forma "vertical", "unilateral", através de publicações pétreas de papel, feitos por autores "renomados", por editoras "tradicionais", "reputadas", "ilibadas"... Nada mais é do que uma sensação de que 'não pega bem". É um desejo de apresentar apenas características bonitas para o público, assim como a vontade de ir bem-vestido numa festa. É como se a Wikipédia fosse nosso chinelão, e publicar um artigo fosse dar um discurso num jantar de gala. Mas cá entre nós, o quão "científico" é esse tipo de temor?

É muito absurdo considerar que a Wikipédia deva ser menos crível do que referências publicadas e revisadas... Puxa vida, nesse semestre mesmo eu li um livro numa disciplina aqui em que no primeiro capítulo tem uma figura de uma "envoltória convexa" dum conjunto de pontos. Na figura, o autor desenhou um polígono CÔNCAVO!... Absurdo, um erro crasso, que salta aos olhos.

Meus colegas nem entenderam muito minha indignação com tal pataquada. Creio que eles ainda estão láá atrás, no século XX, e via de regra acreditam que são eles que não entenderam uma coisa, e não o livro que está errado. Tentaram justificar pra mim porque aquela figura poderia ter sido desenhada daquela forma, o que o autor quis dizer, procuraram enfim criar uma certa exegese da imagem, que restaurasse ao autor sua imaginada dignidade e confiabilidade, que eles criam que ele deveria possuir a priori, apenas porque estas informações estavam colocadas ali naquele monte de páginas de "verdade xerocada", com o carimbo de uma certa editora gringa de nome bacana.

"Não é possível", creem os anacrônicos, "este professor universitário canadense não pode possivelmente ter cometido a falha de desenhar uma figura que fosse o OPOSTO DO CERTO... Deve ter algo que nós não entendemos..."

Claro que eu entendo o receio em "bater o martelo", mas não dava pra negar...

Achei na Internet o site do autor, e lá até tinha uma errata bem extensa, mas não dizia nada sobre esta figura. Enviei um e-mail, achando que ia vivenciar um belo exemplo da interação leitor-autor na criação de textos melhores... Qual o quê, o sujeito nunca me respondeu.

Se fosse um wiki, eu já tinha arrumado essa porcaria. Melhor: tinha criado uma thread na parte de discussão, pra debater com outros leitores (e talvez com o infame autor) pra chegarmos enfim à conclusão de como é o certo.

O jeito científico de fazer as coisas é sempre questionar tudo, e não duvidar de algo só porque está na Wikipédia, e algum faxineiro pode potencialmente ter editado aquele artigo. E se o faxineiro for o Gênio Indomável?

Deixo vocês com uma charada: A Wikipédia tem dentro dela muitos conteúdos extraídos de uma edição antiga da Britannica que se tornou pública. Suponha que eu cito a referida Enciclopédia num artigo meu, isso sería "científico", aceitável no meio acadêmico? Imagino que sim... Agora eu vou lá, e cito um artigo da Wikipédia com este mesmo texto... Aí muitos já vão dizer que não é digno de confiança... Mas é o MESMO texto!!! E olha, potencialmente melhor, atualizado. Como podemos cometer tamanha injustiça??

Mas aí você pode falar assim: "É sempre melhor se referenciar à fonte mais original possível", e eu concordo absolutamente!!... E vou te contar: a Wikipédia faz um trabalho muito melhor do que qualquer Britannica ou qualquer artigo de revista científica em coletar boas referências praqueles assuntos ali abordados. Eu sou um cara que gosta de citar Gauss, de Moivre, e outros textos clássicos. Odeio o conhecimento passado por intermediários, e nem morro de amores pelo conhecimento entregue de primeira mão por seu descobridor. Eu gosto mesmo é do conhecimento que eu produzo. Produzo, e publico nos meus blogs.

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