2008/12/03


O nome da moda

Vi num blog outro dia alguém definindo, enunciando o significado das duas mais novas e excitantes entradas na taxonomia da cultura jovem brasileira contemporânea: "nerd" e "geek". Geeks seriam carinhas descolados que gostam de "gadgets" (principalmente dos da empresa de Cupertino, Apple), usam roupas com um visual do futuro, ou com ícones de jogos "de 8 bits", e cortam cabelo igual personagem de mangá. Nerds são pessoas que sabem alguma coisa sobre como os tais gadgets funcionam e são construídos, e lêem mangás com uma década de antecedência, e são tolerados pelos tais geeks, o que é novidade, já que na tal década antecedente eles não eram tolerados era por ninguém. Nerds usam óculos feios, e geeks usam óculos escuros feios.

Acho maravilhoso ver a forma como as palavras foram ganhando esse significado aí, e como de repente chegou esse momento em que alguém se preocupou em definir, pra "todo mundo combinar" que é isso aí, e a gente poder falar em "moda geek" sem espantar muito o consumidor, porque "geek é OK", não quer dizer que você é uma pessoa que comete atrocidades como estudar trigonometria no fim-de-semana...

Acho que a principal força a estabelecer o "geek" como o transado, e o "nerd" como o que não transa, foi o filme "A Vingança dos Nerds"... Não conheço nada tão marcante com a palavra "geek". Existe ainda algo de fonético em "geek" que o torna mais "bakaneenha", enquanto "nerd" soa como uma tentativa frustrada de um afásico em comunicar qualquer coisa.

Acredito que o fenômeno da segregação social de afásicos, de vários tipos, tem muito a ver com esse assunto aqui.

Verdade seja dita, "geek" e "nerd" são ofensas. São indelicadezas pronunciadas cotidianamente por pessoas intolerantes e insensíveis, a que os alvos destas acabam "se acostumando", e integrando à sua própria personalidade: "sim, é, sou estranho, esquisito, sou um palhaço, riam de mim..." Acho o cúmulo que pessoas que viveram suas vidas submetidas a este tratamento de aberração, bobo-da-corte, motivo de chacota, etc, precisem viver ainda o drama de saber se são "geek" ou "nerd". Quer dizer, não tem fim a crítica? Depois de já ser definido que você é uma aberração risível, você ainda tem que escolher entre dois subgrupos?

Já tenho raiva de ver isso na gringa, mas aqui no Brasil a questão toda tem um twist, o fato de não falarmos inglês e então palavras como twist, que tem significado tradicional, "de dicionário", se tornam neologismo com mais facilidade, adquirindo aqui primariamente o significado que é secundário na língua de origem.

Eu queria contar uma história sobre nerds geeks, porque sempre que ouço essas palavras na mídia moderninha, (tipo a revista Geek) lembro-me de histórias dessas. Tinha um amigo meu na escola que um dia ganhou a alcunha de "Esquisito". "O Esquisito", nossos coleguinhas chamavam ele. Era em português mesmo, não tinha o eufemismo de um anglicismo. Ele lutou por algum tempo, mas acabou aceitando eventualmente. Ainda com algum rancor eventual, acho, mas acabou aceitando sim.

Ele era um cara que tinha algumas habilidades informáticas, certamente acima dos nossos coleguinhas discriminadores. Não sei se ganharia de mim no Code Jam, mas seria certamente capaz de entender do que se tratava. Comprei dele minha primeira placa de som, uma Sound Blaster pré-Pro. Não tenho como expressar o carinho que tenho por aquela pequena placa de som que instalei eu mesmo no meu 286, e me abriu as portas para os joguinhos "modernos", talvez até pra computação gráfica (apesar de tecnicamente não ter nada a ver). Era um dos caras com que eu conversava no recreio, e fazia trabalho em grupo, e fugia do futebol. Deviamos ser ali uns 10 caras estranhos que conviviam no limbo social, e dentre eles tinha o sub-grupo dos caras que mexiam com computador, que deviam ser uns 3 ou 4.

Esse mesmo colega meu foi basicamente um líder num movimento de repúdio a um colega nosso que, como posso dizer, realmente escapava com folga do "normal". Não sei o que ele tinha/tem, mas talvez beirasse a afasia. Digamos apenas que se Alexander Luria entrasse na sala, talvez fosse tomado por um imediato interesse nele.

Esse meu colega Esquisito então inventava apelidos piores ainda pra ele, enchia o saco, fazia piada, e tals. E assim se afastava um pouco do fundo do poço da esquisitice. Havendo mais "losers" abaixo, você fica mais perto dos "winners" na dualidade tradicional dos filmes nas high-schools norte-americanas.

Não sei se todo mundo entende muito bem como funciona isso tudo, mas quando você é um "esquisito", muitas vezes essas humilhações são basicamente tudo o que você pode esperar de convívio social, e é assim que você acaba aceitando tudo. Porque é melhor viver achacado do que isolado. No final das contas, posso condenar todos ataques e achaques, mas não deixava de ser alguém dando atenção ao sujeito, o que às vezes é melhor do que a alternativa: não ligar.

Tem uma coisa interessante sobre esse nosso colega esquisitíssimo... Apesar de todos meus colegas morarem mais ou menos na mesma região ali, eu quase nunca encontrava com eles nas ruas. Quase nunca encontrei colegas meus passeando no(a) Savassi, por exemplo. Ele não, sempre vejo ele por aí, é o único colega de escola que reencontro anos depois do fim da tortura. Não é engraçado que o cara mais "esquisito" de todos seja o único "normal", que anda na cidade? Porque as pessoas não andam na cidade, meu deus??... Nunca entendi bem isso. É porque todo mundo tinha/tem carro menos ele e eu? Vão sempre em lugares caros e exclusivos? É porque todo mundo tá no trabalho ou estudando em casa naquele horário em que eu e ele saímos pra vagabundear por aí? Sei lá... Sempre entendi que éramos esquisitos em várias coisas, mas nunca entendi que freqüentar a Savassi às 15:00 fosse uma esquisitice.

De repente está aí o lance da "redenção do esquisito". Porque nós, palhaços, somos experimentadores inconscientemente, e acabamos dando uma dentro de vez em quando, e criamos moda... Esquisitos tem um certo destino-manifesto de desbravadores, como os degredados da Europa que colonizaram o Novo Mundo. Somos o contrário em vários parâmetros, e rechaçados por tal, mas às vezes contrariamos um certo parâmetro que agrada a galera, e caímos nas graças do povo, até que a moda se estabelece e viramos lixo de novo.

Então sei lá, entendo um pouco o lance de "revelar o charme" dos nerds sim, e a moda recorrente de cultuar o "bizarro" (palavra de significados notoriamente controversos). Mas quando a conversa começa a ficar prática demais, ali na famosa diferença entre o Charme e o Funk, começa a me dar asco. Começa a sair da coisa "true". O universo da repressão dos garotos que gostam de matemática, e os outros esquisitos, é muito maior do que essas marcas que tão sendo inventadas aí agora, com essas definições fáceis assim tipo, "geeks são caras que fazem as coisas, e nerds são fracassados"... Isso é conversa de empresário querendo ganhar dinheiro, gente, é marketing.

Talvez seja por ter convivido tanto com os esquisitos, as aberrações das escolinhas, por conhecer de perto essa sutil discriminação (que não é muito noticiada porque não envolve nem raça nem religião), é que não sei mais achar graça de "ser nerd". Nem sei achar aceitável que exista um tipo de esquisito "que se deu bem", e um que continua atirado à nerda. Eu até soube ver graça nisso por um tempo, mas hoje quero acreditar que as pessoas são mais complicadas do que isso. Que especialmente as pessoas estranhas possuam uma diversidade que é desrespeitada quando se tenta enquadrá-la em rótulos e nomes de "tribos".

Temos que dar cabo desse negócio de dar nome pra quem faz alguma coisa da vida. Nós é que somos os normais. Nós é que nos atiramos sem ressalvas à vida nesse universo. Tiramos nossas máscaras e damos a cara a tapa na sociedade. Somos afásicos, falastrões, burros, inteligentes, feios, charmosos, misteriosos, simpáticos, amedrontadores... Somos gente de verdade, muito prazer.

***

Aaah, já ouço meus colegas de escola lendo isso, e reagindo com um popular "dããã que mongol". Ou talvez um "hahaha e agora, você vai chorar?" Talvez me perguntando se eu quero ser padre. Caralho, uma vez me perguntaram se eu queria ser PADRE, velho!... Vai ser esquisito assim lá... em casa. Pior que eu já quis.

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